Urariano Mota*,
Recife – Direto da Redação
Recife (PE) -
Mais de um crítico já observou que o filme “12 Anos de Escravidão”, para
historiadores norte-americanos, delimita um marco no conhecimento da
escravidão. Falemos agora do que esse filme representa para os
brasileiros.
Na última
sexta-feira, na fila do cinema aonde fui, não havia um só negro. Minto: havia
só este mulato que agora escreve. Ao procurar outro na fila, recebi dos
cidadãos de pele mais clara uns olhos envergonhados, que se baixavam até o
chão. Tão Brasil. Tão brasileiro é o pudor educado para o que não se enfrenta.
Mas o filme na tela nos pagaria. Lá, podemos ver o retrato da casa-grande: a
indiferença de todos ante a tortura. Linda, a sinhá olha da varanda o negro ser
torturado e nada vê, melhor, assiste ao espetáculo obsceno como uma
liberalidade do senhor, o seu marido. Que aula. É um filme quase didático da
infâmia, do que no Brasil está encoberto até hoje.
Para a nossa
própria história, a do Nordeste do açúcar em especial, para o que não se
destaca em Gilberto Freyre, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a
realidade no filme mostra um escravo na forca, pendurado por horas em uma
árvore, enquanto a rotina da fazenda segue sem distúrbio, sem assaltos de
horror ou de repulsa. Mas isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha
cidade, na sua, jovens são amarrados em postes, os velhos pelourinhos. Os
novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e
ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento.
Se houvesse uma só
imagem a destacar, eu destacaria a tortura de uma escrava sob o chicote. Por um
lado, lembrei o comportamento da sobrevivência sob os torturadores na ditadura
brasileira. Por outro, se fosse desenvolvida ao nível do real, do
histórico, a cena daria vômitos pela agonia da dor, apesar de apenas
representada. Porque a realidade é ainda mais cruel que o mostrado na tela. E
os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os
negros escravos no Brasil eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas
vísceras como bagaço. Outros, após o chicote, condenados à morte tinham as
feridas abertas lambidos por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera,
cruel e ferina a língua de um boi. Poupemos o domingo. Mas de passagem menciono
que negros eram ferrados no corpo como os quadrúpedes da fazenda. Eles
não tinham a marca do dono por uma medalhinha, como aparece no escravo Salomon
no filme.
É estranho, é
sintomático da crueldade brasileira, que os melhores relatos sobre a nossa
escravidão (nossa aí em mais de um sentido, de falta de espírito liberto e de
herança cultural) venham de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e
Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife.
De Vauthier cito: “Madame
Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha roubado seis vinténs, ela
amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!! Levantando- lhe a
roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O mais velho deles
observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do que o de um cavalo,
quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a praticar coisas
semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas depois, mas
contá-las... Que mulher! Que alma!... Hoje o cadáver de um negro ficou boiando
na praia, debaixo das nossas janelas, levado e trazido pelas oscilações das
marés. Mil pessoas passaram, viam-no, pararam um instante antes de seguirem
caminho muito filosoficamente. Aprecio pouco as ideias geralmente admitidas
sobre cadáveres que tendem em alguns casos a conceder mais cuidados aos
despojos sem alma do que ao ser quando está vivo – mas este descaso, essa
indiferença geral perante a morte – é verdade que era um negro! Um negro vivo
já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa incúria generalizada
com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso caracteriza de modo bem
saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal maquilada em
civilização”.
Saímos do cinema
com uma frase do personagem na memória: “Eu sou a prova de que não existe
justiça na terra”. Brancos, negros e mestiços de todas as cores bem
compreendemos. Enquanto os miseráveis continuarem a ser presuntos,
presidiários, enquanto não for vista a pele mais negra no topo da sociedade, em
um papel que não seja o de capitão-do-mato, como Joaquim Barbosa, não existe
justiça no Brasil. Mas podíamos começar pela conhecimento real da nossa
história.
É necessário que
esse filme se prolongue em artigos e discussões entre os brasileiros. Ele é o
vislumbre do que temos sepultado. Vejam o filme e releiam a história escura,
oculta da escravidão. O filme é melhor do que os livros de sociologia escritos
no Brasil até hoje.
*É pernambucano,
jornalista e autor dos livros "Soledad no Recife" e “O filho renegado
de Deus”. O primeiro, recria os últimos dias de Soledad Barrett. O segundo, seu
mais novo romance, é uma longa oração de amor para as mulheres vítimas da
opressão de classes no Brasil.
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