ANA CRISTINA PEREIRA e PAULO
PENA - Público
A estatística
oficial aponta para 735 mil fogos devolutos, mas há quem fale num milhão.
Enquanto isso, aumenta o número de sem-abrigo. Só no ano passado a AMI
contactou 549 novos casos
Foi um rapaz que a
chamou. Fartara-se da rua, metera o pé na porta e entrara. Ela entra e sai com
discrição, não vá alguém perceber que dorme no rés-do-chão daquele prédio há
tanto devoluto. Uma noite, que até pode ser esta, depara-se com portas e janelas
emparedadas.
É grande o número
de casas vazias. Umas 735 mil, segundo o Instituto Nacional de Estatística
(INE). “Mais de um milhão”, segundo Pedro Bingre do Amaral, professor do
Instituto Politécnico de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Regionais
e Urbanos do Instituto Superior Técnico.
Impossível adiantar
quantas pessoas estão sem casa, muito menos quantas a têm clandestina, como
aquela rapariga que até já vendeu o cadeado que o amigo metera na porta. Na
Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, aprovada em 2009,
consta “a promoção do conhecimento” sobre o fenómeno. O Instituto de Segurança
Social, porém, não esclarece quantas se encontram nesta situação.
Há dados avulsos. O
Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto está a
acompanhar 1377. A maioria dorme em abrigos de emergência ou em quartos de
pensão. Uns 200 persistem na rua – uns 100 em casas ou fábricas abandonadas, a
maior parte junto a bocas de tráfico de heroína e cocaína. Em Lisboa, numa
noite, mais de 800 voluntários contabilizaram 852 sem-abrigo – 509 na rua.
O número está a
aumentar com a crise. Ana Nascimento, directora-adjunta da acção social da AMI,
diz que no ano passado os serviços depararam-se com 549 novos casos a nível
nacional, num total de 1679 sem-abrigo acompanhados, mais 8% do que em 2012.
Alguns eram endividados, isolados, de súbito desempregados.
O contraponto foi
no domingo passado feito pelo diário britânico The Guardian: na Europa
existem umas 11 milhões de casas vazias e uns 4,1 milhões de sem-abrigo. Um
escândalo, no entender de Freek Spinnewijn, director da Federação Europeia de
Organizações Nacionais que Trabalham com Sem Abrigo.
Pelo menos em
Portugal, o número de casas devolutas “está subavaliado”, afirma Bingre do
Amaral. Milhares de imóveis considerados como “segunda habitação” ou “para
venda”, na prática, são casas devolutas. “Portugal tem o segundo maior número
de casas por agregado familiar da Europa, 1,45, apenas atrás de Malta, e à
frente da própria Espanha, que tem 1,4 casas por agregado”, diz.
Em 2001, o parque
habitacional já excedia as necessidades de residência. E a tendência de aumento
da construção não parou aí. “Entre 2001 e 2011 construíram-se 690 mil novos
fogos”, assegura. Boa parte deles não foi vendida. Estão desocupados, mas podem
não entrar na categoria “devolutos”.
A razão de ser
deste ritmo parece-lhe, sobretudo, fiscal. “Até ao ano passado, os fundos de
investimento imobiliário estavam isentos de IMI e IMT e se estivessem sediados
em zonas francas estavam também praticamente isentos de IRC”, aponta Bingre do
Amaral. Era vantajoso, em termos ficais, manter as casas fora do mercado, à
espera de uma valorização. Com a crise, os fundos imobiliários, os promotores e
a banca ficaram com um problema. E a demografia não favorece a recuperação. Um
documento do Bank for International Settlements, de 2010, aponta para uma
desvalorização de 85% do valor das casas em Portugal até 2050.
O problema, observa
Henrique Pinto, director da Cais, é que o preço das casas se mantém alto para
quem dispõe de rendimentos baixos. O que pode arrendar quem recebe 179 euros de
Rendimento Social de Inserção ou 235 euros de pensão social? Não põe em causa a
propriedade privada, mas lembra que muitos dos imóveis devolutos até são
propriedade pública. Parece-lhe inaceitável que o Estado, as câmaras e a Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa não tenham uma bolsa de habitação social para,
de imediato, acolher quem fica sem tecto.
De acordo com a
Estratégia Nacional, ninguém deve ser obrigado a ficar na rua mais de 24 horas.
Vigora alguma resistência ao acompanhamento social, sobretudo, entre pessoas
com problemas de saúde mental, de consumo excessivo de álcool ou outras drogas,
indica Vanda Coelho, assistente social da Associação para o Planeamento da
Família. Há quem já esteja há anos de rua. Um homem a quem foi atribuído um
quarto de pensão dormia no chão nos primeiros tempos.
A rapariga do
prédio devoluto não entra na estratégia, apesar dos apelos do amigo. Passa as
noites naquele rés-do-chão poeirento, sem água, à luz de vela. “Ela quer, mas
não quer sair”, diz o amigo.
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