Alfredo Leite – Jornal de Notícias, opinião
A ideia já me tinha
ocorrido, mas só a interiorizei quando o secretário de Estado formalizou o
anúncio na semana que passou. O Fisco vai sortear carros para premiar os
cidadãos exemplares que solicitem fatura com o respetivo número de
identificação fiscal. E eu, que em matéria de finanças sou um cidadão quase
perfeito, só agora percebi que estou a ser discriminado. Por minha culpa, note-se.
Neste caso, o Estado está inocente.
Não tenho carta de
condução, logo não conduzo e, portanto, estou-me nas tintas para tão generoso
prémio. Imagino que aconteceria o mesmo se fosse invisual e os prémios de
Passos Coelho para combater a evasão fiscal fossem televisores LCD de gamas
média e alta. Daqueles tão grandes que teríamos de contrair empréstimo bancário
para mudar de apartamento, só para ter parede para afixar o aparelho. Como
cilindradas, cavalos e binários são coisas que não me assistem, se fosse só
pelo motorizado prémio eu, um "desmotorizado" de longa duração,
jamais pediria uma fatura. E não vale a pena dizer com pragmatismo que poderia
fazer dinheiro a vender a viatura. Tenho tanto jeito para o negócio como para
polícia das Finanças.
A questão é outra.
Ao colocar na frente do nariz de cada um de nós uma cenoura de gama alta, o
Governo pode até melhorar a performance no combate casuístico à fuga ao Fisco.
Será, porventura, uma ação de pouca dura. Acabar com a economia paralela
acenando-nos apenas com paliativos de cilindrada generosa, exige um plano B.
Obriga a medidas estruturadas, mais dignas de uma democracia europeia e menos
de um país em vias de desenvolvimento. Plano alternativo que, obviamente, o
Executivo PSD/CDS não tem.
Combater o crime
fiscal na origem dá mais trabalho e é menos popular do que viciar o povo em
concursos acumuláveis com a raspadinha, o totoloto ou o euromilhões. Em resumo:
oferecer carros é fácil, é barato (vão gastar-se 10 milhões de euros) e dá
milhões (prevê-se um encaixe máximo estimado em 800 milhões de euros). O pior é
o resto. Declarar e pagar impostos pressupõe essa nobre ideia de cidadania que
é a redistribuição da riqueza. Uma partilha solidária em que os mais abastados
pagam para que os menos favorecidos da sociedade vivam mais dignamente.
Ao promover
tômbolas automobilísticas, o Governo não está só a dar mais encargos às
famílias (dizem-me que um carro é "uma renda") com parcos recursos
financeiros, mas com sorte ao jogo. Pode estar também a engrossar o património
dos mais ricos ou, simplesmente, a premiar os incumpridores dos compromissos
fiscais que, ao que tudo indica, também podem concorrer ao carro da sorte. Ou
seja, está a promover deliberadamente uma distorção social.
No curto prazo, a
medida vai favorecer os cofres do Estado. Mas até quando é que as Finanças vão
promover esta "Roda da sorte"? Até ao próximo Governo entrar em ação?
Ou até achar que tem o encaixe estabilizado para troika ver? É que, ou me
engano muito, ou, quando os burocratas do Terreiro do Paço deixarem de oferecer
carros, a cidadania de parte do povo vai eclipsar-se num ápice. E, por
diferentes razões, esses contribuintes vão fazer como eu. Vão estar-se nas
tintas para as faturas.
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