Até que ponto o
programa da troika, que o PSD ajudou a delinear, não é o governo do PSD?
José Pachecio
Pereira – Público, opinião
Na altura em que
este artigo vai ser publicado está a decorrer um congresso do PSD. Terá
peripécias, como é habitual, e é natural que algumas me digam respeito.
Encontrar inimigos pode ser útil nestes tempos e não há nada com uma boa vaia
para animar as televisões.
Alguns dos que
arrastaram a imagem do PSD pelas ruas de amargura e lhe tiraram a honra perdida
da governação, ou seja, de ser um partido com prestígio de Governo, coisa que
se perdeu quando se publicaram comunicados a explicar se tinha havido ou não
uma sesta do primeiro-ministro, ou a fazer conferências de imprensa anunciando
travessias do Tejo, em vésperas de eleições, sem se saber se eram túneis ou
pontes, são especialistas destes números como o da "lei da rolha".
Outros acham que a política é como as touradas e que é "corajoso" é
bramir, "então venham cá mostrar-se, de peito feito, como forcados"
para a gente lhes mostrar o que pensa. Eu sei o que pensam e mais ainda, sei
porque o pensam, e sei muito bem o efeito devastador que tem num partido
político este tipo de apelo clubístico. É de política que se trata, não é de
touradas, nem de futebol.
A comunicação
social continua a falar de coisas que não existem há muito tempo, como sejam
"barões" e "senadores", uma boa manifestação de ignorância
sobre o que é o PSD nos nossos dias. Uns sabem muito bem que para se
falar num congresso tem que se ser delegado ou fazer parte dos órgãos do
partido, outros, como os jornalistas, deviam saber. Acresce que mesmo assim há
coisas que não se podem dizer em cinco minutos, nem provavelmente têm ali o
local ideal para serem ditas. "Medo" de falar num Congresso? Batam
por favor a outra porta, porque eu digo sempre as mesmas coisas, espantem-se,
seja na Aula Magna seja numa reunião ou debate partidário, institucional ou
público, como muitos militantes do PSD sabem muito bem, porque me ouviram.
Depois há o anátema de se falar nessa coisa maldita que é a comunicação social.
Muitos que se especializaram em fazer quotidianamente fugas para a comunicação
social, e são especialistas na intriga, também costumam queixar-se de quem tem
acesso à comunicação social, como se fosse um crime fazê-lo às claras e sem
usar as "fontes anónimas" para dar opinião.
Deixemos isto que é
pouco importante. O que é importante, é outra coisa, é a descaracterização do
PSD como partido social-democrata. Eu sei que me repito, mas às vezes é
preciso. O PSD é o fruto de uma síntese única na vida política portuguesa entre
o liberalismo político dos nossos "liberais" oitocentistas, com sequência
nalgum republicanismo moderado, na oposição à ditadura não comunista, na
"ala liberal", com o personalismo cristão, compreendendo a doutrina
social da Igreja, e por fim, last but not least, a tradição da
social-democracia alemã e nórdica, ou seja do princípio de que o estado deve
ter uma função essencial de garantir a justiça social, seja criando
oportunidades iguais a todos, por exemplo, por via da educação universal e
obrigatória, mas acima de tudo pela garantia de que os frutos da riqueza de um
país, são distribuídos em primeiro lugar pelos que mais precisam. O PSD
considerava-se um partido da "classe média", dos self made man,
do mundo do trabalho intelectual e fabril, a que atribua o valor de elemento
fundador da dignidade humana. Agora parece um blogue radical de direita, de
gente que acha que a culpa de tudo é sempre dos mais fracos, trabalhadores dos
estaleiros, funcionários dos escalões inferiores, velhos, pensionista e
reformados.
Muitas vezes se diz
que o PSD nunca foi social-democrata, mas sim um partido populista, muito mais
à direita na sua militância do que a sua elite dirigente. Sim e não, muitas
vezes flutuou ao sabor dos tempos e das circunstâncias, sendo que a sua
história, o "programa não escrito", não é unívoca. Porém nunca
abandonou a matriz da sua génese e, nas lideranças mais consistentes, seja de
Sá Carneiro, ou Mota Pinto, ou mais tarde de Cavaco Silva e Manuela Ferreira
Leite, nunca pôs em causa o seu programa identitário. É alias esse programa que
define o papel sui generis do PSD na vida política portuguesa e que
foi capaz de lhe dar o papel de partido reformista que teve em momentos
essenciais.
É isto que está em
risco, porque não se trata apenas de fazer uma interpretação mais
"liberal" do programa social-democrata, o que seria justificado pela
actual conjuntura, mas de substituir o programa genético por uma outra coisa
espúria e alheia, mais própria de algum conservadorismo mais agressivo e
daquilo que se considera ser o "neo-liberalismo", meio Tea Partymais
escola de Chicago, à portuguesa, claro. Tal está a ser feito a partir do
governo, mas está a impregnar o partido, não por convicção ideológica, mas
porque o papel crescente da partidocracia no interior dos grandes partidos
portugueses torna os quadros partidários profissionalizados dependentes dos
lugares com origem no poder. Podia-se considerar que se trata apenas de uma
situação de emergência em que os governantes do PSD estão apenas a tentar fazer
sair o país da crise tornando-se executantes aplicados de programa datroika com
que não concordavam. Mas quantas declarações políticas já foram feitas, desde a
que dizia que "o programa do PSD era o programa da troika",
mostrando que não se trata de uma comunhão por necessidade, mas sim numa
concordância de fundo, que vai muito para além das circunstâncias actuais? Até
que ponto o programa da troika, que o PSD ajudou a delinear, que o PSD
completou nas negociações com Passos e Gaspar e a troika, não é o governo
do PSD?
Se virmos bem, a
fonte dos discursos de aceitação pacífica de redução da soberania, de
diminuição dos poderes do parlamento português, de um futuro de vinte ou trinta
anos em que a possível recuperação económica não implicará a recuperação
social, em que não há uma palavra para o trabalho, para o seu valor social, em
detrimento de uma repetição monocórdica da palavra "empresas", o
discurso de divisão entre jovens e velhos, o efectivo abandono de qualquer
preocupação ou medida contra o empobrecimento dos desempregados de longa
duração ou os "desencorajados", é o governo do PSD e
Primeiro-ministro.
Não, não é
patriotismo. Não, não salvará o país, bem pelo contrário. Não, não é aceitável
num partido social-democrata. Não, a continuar assim acabará com o papel
histórico do PSD na sociedade portuguesa. Tenho a certeza que muitos militantes
do PSD presentes no Congresso lerão este artigo. Mais: muitos sabem que eu
tenho razão e partilham das mesmas preocupações. Aliás seria isto que eu diria
se lá estivesse. Nem mais nem menos.
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