Carvalho da Silva –
Jornal de Notícias, opinião
O Manifesto pela
reestruturação da dívida já valeu muito pela agitação que desencadeou no
pântano das inevitabilidades. Agita-se Passos Coelho e seus ministros,
agitam-se os Catrogas, agitam-se candidatos da Direita ao Parlamento Europeu,
agita-se a Comissão Europeia e até se agita o funcionário do FMI que esteve na
troika até há poucos meses. O que vem ao de cima é desorientação, fraqueza e
falta de razão.
Vale a pena ver o
que veio ao de cima com a agitação do pântano.
O timing. Disse um
deputado do PSD, na Assembleia da República, que o mal estava no timing. Agora
- perguntava ele - que estamos quase a chegar ao fim do programa, vêm com
propostas que podem irritar "os mercados"?
Mas o que seria um
bom timing? Diz a dr.ª Teodora Cardozo: "Uma reestruturação só se
justifica numa situação de catástrofe, como a grega". Então esse é que
seria o timing apropriado? Esperar que chegue a catástrofe para reconhecer que
a dívida não é pagável?
Pires de Lima,
inchado de competência, afirma que o Manifesto é "inoportuno" e um
"tiro no pé". Para justificar a afirmação recorre a uma interpretação
mentirosa sobre o conteúdo das propostas e insiste na ilusão do "fim de um
percurso" com êxito. Ora, a 17 de maio não estaremos no fim do percurso,
mas sim no fim de uma etapa de um longo percurso de empobrecimento e
incapacitação do país, proposto por Governo, troika e presidente da República.
O que se segue é uma etapa ainda mais violenta, quando grande parte da
sociedade portuguesa já está exausta e aqueles que têm condições fogem do país.
A catástrofe. Dizem
deputados da Direita e alguns comentadores de serviço que a reestruturação
seria uma catástrofe. É verdade que sem acesso a mais empréstimos, o Estado
português teria de financiar as suas despesas com as suas receitas. Isso é
difícil. Mas é precisamente o que o Orçamento de 2014 prevê: saldo primário
(sem juros) nulo, despesas financiadas por receitas. E, muito mais difícil é
ter saldos orçamentais primários de 3% do PIB durante 20 anos, como está
previsto no programa que não tem fim. Isto sim é austeridade para lá do
imaginável.
Irrealismo. Diz
Passos Coelho que reestruturar é irrealista. Mas, depois do agitar do pântano,
o significado de irrealismo alterou-se. Quem pensa ser possível pagar a dívida
até o último cêntimo, com estes juros e estes prazos, está obrigado a explicar,
tintim por tintim, como é que isso pode ser feito e as implicações de o fazer.
Veremos então o que é irrealista. O primeiro-ministro pode mesmo começar por
explicar as duras medidas que tem escondidas até às eleições europeias.
O tabu. De tudo o
que veio à tona com o agitar do pântano, o tabu é o mais revoltante. "Todos sabemos que a dívida não pode ser paga até o último tostão" -
dizem em privado os mesmos que mandam calar quem o reconhece abertamente -,
"há verdades que não podem ser ditas porque os mercados se zangam".
Mas alguém em perfeito juízo, e minimamente conhecedor dos tempos que vivemos,
acredita que Portugal encontrará uma saída justa e digna para o seu povo, com o
aplauso dos mercados?
O tabu repugna
porque sugere que quem não se cala é mau português. Sugere também que quem não
se cala a bem tem de ser calado de outra maneira qualquer. Sugere, ainda, que a
verdade pouco importa e que o debate público é irrelevante; que a democracia já
não conta e que nos resta aceitar a vontade e o interesse dos
"mercados". Por aqui passa uma linha vermelha. Os que gritam
"calem--se" estão a pisá-la.
Se tivéssemos
dúvidas aonde este tabu nos pode levar veja-se o que o presidente Cavaco Silva
fez aos conselheiros que não se calaram. Parece ser um liminar: "ponham-se
no olho da rua, porque à minha volta só quero gente que esteja de acordo com o
que eu digo". Gostava muito de estar engando, mas provavelmente não
estarei: Cavaco Silva jamais se assumiu ou assumirá como presidente de todos os
portugueses, está profundamente comprometido com as políticas que conduziram o
país à crise, insiste em submeter os portugueses ao aprofundar das
desigualdades, das injustiças e do sofrimento do povo. Isto dói e merece revolta.
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