Tomás Vasques –
jornal i, opinião
A forma violenta
como o governo e a tralha neoliberal, e mesmo o senhor Presidente da República,
reagiram a um simples manifesto não augura nada de bom para a democracia
Sem as pretensões
de um outro manifesto, apresentado em 1848, por Marx e Engels, o manifesto
apresentado a semana passada caiu sobre o governo que nem uma bomba. Este,
assinado por 74 pessoas, foi apenas um apelo moderado ao governo para que, na
situação em que estamos, considere a restruturação da dívida como uma solução
para aliviar um prolongado Inverno, de décadas de austeridade e pobreza.
Proposta suave, mas que provocou um abalo sísmico político e um chorrilho de
críticas que fez estalar o verniz a muita gente. O assunto é pertinente e nem
sequer é novo. No mínimo, há quase duzentos anos que a dívida do Estado e a sua
reestruturação nos persegue. Já em 1909, no estertor da monarquia, desalentado,
porque tardava a implantação da República, dizia Guerra Junqueiro, poeta
panfletário, republicano e tudo, segundo conta Raul Brandão, nas Memórias:
"Isto está liquidado, a ocasião passou. O rei casa-se com uma inglesa e
vem por aí um caixeiro qualquer de Inglaterra, que manobra por trás da cortina.
É a bancarrota adiada por muito tempo. Daqui a anos o juro da dívida interna é
reduzido, mas vai-se vivendo e paga--se ao estrangeiro, que é o
principal". É o principal para eles, obviamente. Há quase um século
colocava-se, exactamente da mesma maneira, as mesmas questões: a decadência do
regime, os mandantes estrangeiros e a dívida do Estado.
O dito manifesto
teve o mérito de, na altura certa, pôr o dedo nas várias feridas do actual
governo. E daí a reacção tão nervosa e descabelada, como quem grita de dor, do
primeiro-ministro e de vários ministros. Desde logo, fez cair no ridículo o
discurso eufórico do "sucesso" das medidas de austeridade dos últimos
três anos, com que a coligação de Direita pretendia alimentar a próxima
campanha eleitoral. Levantou o manto espesso da demagogia, deixando à mostra a
nudez crua da verdade: pelo caminho por que este governo enveredou, os
portugueses regressarão, aos poucos, às agruras e à pobreza dos anos 50 e 60 do
século passado. Nada que lhes importe: os portugueses estão pior, mas os
mercados estão tranquilos. Até Cavaco Silva, do alto da sua cumplicidade com as
políticas do governo, avisou: com a dívida que temos, nem daqui a trinta anos
deixaremos de empobrecer. A estratégia do governo de propagandear o
"sucesso" das suas políticas esfumou-se com este manifesto.
Depois, o manifesto
tocou noutra ferida do governo: os falsos e demagógicos apelos ao
"consenso". Ficou provado que é possível encontrar consensos na
sociedade portuguesa. O apelo à reestruturação da dívida reuniu pessoas de
todos os quadrantes políticos, de Bagão Félix a Francisco Louçã, de João Cravinho
a Carvalho da Silva. Até o incrédulo Jerónimo de Sousa, alinhou, ao dizer:
"Este manifesto só pecou por chegar tarde, mas mais vale tarde do que
nunca". Isto quer dizer que é possível alcançar consensos na sociedade
portuguesa, mas não à volta das políticas suicidárias do governo. E, assim, se
desmascarou o outro eixo do governo para enganar incautos e conseguir votos.
Não é um consenso com o maior partido da oposição que o governo quer. Quer
meter o país de cócoras à volta de um pensamento único - a austeridade e os
interesses dos "mercados".
Finalmente, a forma
violenta como o governo e a tralha neoliberal, e mesmo o senhor Presidente da
República, reagiram a um simples manifesto não augura nada de bom para a saúde
da nossa democracia. Começaram, como profissionais do engano, a criticar propostas
que não constavam no documento. Desfeito o ardil, passaram a atacar a
seriedade, o carácter e as motivações dos subscritores. Acabaram, como único
argumento, a depositar velas no altar do Santo dos Mercados. Pelo seu lado, o
senhor Presidente da República mostrou que, para ele, a opinião ainda é um
delito, exonerando de imediato os seus conselheiros, quando levou meses para
exonerar um outro conselheiro, este de Estado, envolvido num dos maiores roubos
da história feito aos portugueses.
Ficou claro que o
país precisa de mais manifestos.
Jurista, escreve à
segunda-feira
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