terça-feira, 18 de março de 2014

Portugal: O MANIFESTO



Tomás Vasques – jornal i, opinião

A forma violenta como o governo e a tralha neoliberal, e mesmo o senhor Presidente da República, reagiram a um simples manifesto não augura nada de bom para a democracia

Sem as pretensões de um outro manifesto, apresentado em 1848, por Marx e Engels, o manifesto apresentado a semana passada caiu sobre o governo que nem uma bomba. Este, assinado por 74 pessoas, foi apenas um apelo moderado ao governo para que, na situação em que estamos, considere a restruturação da dívida como uma solução para aliviar um prolongado Inverno, de décadas de austeridade e pobreza. Proposta suave, mas que provocou um abalo sísmico político e um chorrilho de críticas que fez estalar o verniz a muita gente. O assunto é pertinente e nem sequer é novo. No mínimo, há quase duzentos anos que a dívida do Estado e a sua reestruturação nos persegue. Já em 1909, no estertor da monarquia, desalentado, porque tardava a implantação da República, dizia Guerra Junqueiro, poeta panfletário, republicano e tudo, segundo conta Raul Brandão, nas Memórias: "Isto está liquidado, a ocasião passou. O rei casa-se com uma inglesa e vem por aí um caixeiro qualquer de Inglaterra, que manobra por trás da cortina. É a bancarrota adiada por muito tempo. Daqui a anos o juro da dívida interna é reduzido, mas vai-se vivendo e paga--se ao estrangeiro, que é o principal". É o principal para eles, obviamente. Há quase um século colocava-se, exactamente da mesma maneira, as mesmas questões: a decadência do regime, os mandantes estrangeiros e a dívida do Estado.

O dito manifesto teve o mérito de, na altura certa, pôr o dedo nas várias feridas do actual governo. E daí a reacção tão nervosa e descabelada, como quem grita de dor, do primeiro-ministro e de vários ministros. Desde logo, fez cair no ridículo o discurso eufórico do "sucesso" das medidas de austeridade dos últimos três anos, com que a coligação de Direita pretendia alimentar a próxima campanha eleitoral. Levantou o manto espesso da demagogia, deixando à mostra a nudez crua da verdade: pelo caminho por que este governo enveredou, os portugueses regressarão, aos poucos, às agruras e à pobreza dos anos 50 e 60 do século passado. Nada que lhes importe: os portugueses estão pior, mas os mercados estão tranquilos. Até Cavaco Silva, do alto da sua cumplicidade com as políticas do governo, avisou: com a dívida que temos, nem daqui a trinta anos deixaremos de empobrecer. A estratégia do governo de propagandear o "sucesso" das suas políticas esfumou-se com este manifesto.

Depois, o manifesto tocou noutra ferida do governo: os falsos e demagógicos apelos ao "consenso". Ficou provado que é possível encontrar consensos na sociedade portuguesa. O apelo à reestruturação da dívida reuniu pessoas de todos os quadrantes políticos, de Bagão Félix a Francisco Louçã, de João Cravinho a Carvalho da Silva. Até o incrédulo Jerónimo de Sousa, alinhou, ao dizer: "Este manifesto só pecou por chegar tarde, mas mais vale tarde do que nunca". Isto quer dizer que é possível alcançar consensos na sociedade portuguesa, mas não à volta das políticas suicidárias do governo. E, assim, se desmascarou o outro eixo do governo para enganar incautos e conseguir votos. Não é um consenso com o maior partido da oposição que o governo quer. Quer meter o país de cócoras à volta de um pensamento único - a austeridade e os interesses dos "mercados".

Finalmente, a forma violenta como o governo e a tralha neoliberal, e mesmo o senhor Presidente da República, reagiram a um simples manifesto não augura nada de bom para a saúde da nossa democracia. Começaram, como profissionais do engano, a criticar propostas que não constavam no documento. Desfeito o ardil, passaram a atacar a seriedade, o carácter e as motivações dos subscritores. Acabaram, como único argumento, a depositar velas no altar do Santo dos Mercados. Pelo seu lado, o senhor Presidente da República mostrou que, para ele, a opinião ainda é um delito, exonerando de imediato os seus conselheiros, quando levou meses para exonerar um outro conselheiro, este de Estado, envolvido num dos maiores roubos da história feito aos portugueses.

Ficou claro que o país precisa de mais manifestos.

Jurista, escreve à segunda-feira

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