terça-feira, 18 de março de 2014

Thomas Piketty: A NÃO SER QUE AJAMOS, A DESIGUALDADE GLOBAL VAI PIORAR




A não ser que ajamos, a desigualdade em nível global vai se tornar muito pior, vindo eventualmente a tornar as nossas instituições uma piada.

Jacob S. Hacker e Paul Pierson

Nos anos 1990, dois jovens economistas franceses, então ligados ao Massachusetts Institute of Technology (MIT), Thomas Piketty e Emmanuel Saez, começaram o primeiro esforço rigoroso para reunir dados sobre desigualdade nos países desenvolvimentos, ao longo de décadas. No estouro da crise, em 2007, questões fundamentais de economia que até então vinham sendo ignoradas chamaram a atenção. A pesquisa de Piketty e de Saez estava pronta, com dados que mostravam que as elites nos países desenvolvidos tinham, nos últimos anos, enriquecido muito mais do que a população em geral e do que a maioria dos economistas haviam suspeitado. Ao longo da década passada, de acordo com Piketty e Saez, a desigualdade tinha retornado a níveis próximos daqueles do início do século XX.

No último outono, Piketty publicou sua obra magna, O Capital no Século XXI, na França. O livro busca modelar a história, as tendências recentes, e volta ao futuro do capitalismo no século XIX.The American Prospect perguntou a especialistas e acadêmicos que estudam a desigualdade para analisarem o argumento de Piketty e o impacto potencial dele sobre as políticas dos Estados Unidos.

Jacob S. Hacker, diretor do Institution for Social and Policy Studies e Stanley B. Resor, professor de Ciência Política na Universidade Yale, Paul Pierson, o Professor de Ciência Política da cadeira John Gross, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, são os co-autores, mais recentemente, do “Winner-Take-All Politics: How Washignton Made the Rich Richer and Turned Its Back on the Middle Class” [algo como: “O vencedor sempre ganha, na Política: como Washington tornou os ricos mais ricos e deu as costas para a classe média”]. Heather Boushey é o diretor executivo e economista chefe no Washington Center for Equitable Growth. Branko Milanovic é professor visitante no Graduate Center, da Universidade da Cidade de Nova York, um pesquisador sênior do Luxembourg Income Study Center, e o autor de The Haves and the Have-Nots: A Brief and Idiosyncratic History of Global Inequality [algo como: Os que têm e os que não têm: uma breve e idiossincrática história da desigualdade global].

Um Tocqueville para hoje

Jacob S. Hacker e Paul Pierson

Quando Alexis de Tocqueville visitou a América no começo dos anos 1830, o aspecto da nova república que mais o entusiasmou foi a sua notável igualdade social. “A América, então, exibia no seu estado social um extraordinário fenômeno”, disse Tocqueville, maravilhado. “Lá os homens parecem ter muito mais igualdade no que respeita às condições materiais e intelectuais... do que em qualquer outro país do mundo, ou em qualquer outra época de que se tenha memória”.

Para Tocqueville, que ignorava quase completamente a exceção sombria do Sul, o progresso americano em direção a uma maior igualdade era inevitável, a expansão de seu espírito democrático, imbatível. A Europa, acreditava ele, em breve seguiria a liderança da América. Ele estava certo – de certa forma. A democracia ascendia, mas a desigualdade, também. Somente com a Grande Depressão do Século XX, com duas terríveis guerras e com a criação de um estado moderno de Bem Estar Social a concentração de riqueza nas democracias ricas começou a se dissipar e os frutos do rápido crescimento começaram a implicar ganhos generosos para os trabalhadores comuns.

Agora, um outro francês, com uma visão panorâmica – e evidências muito mais precisas – quer nos fazer pensar de nova maneira a respeito do progresso da igualdade e da democracia. Embora herdeiro da tradição analítica da história, de Tocqueville, Thomas Piketty tem uma mensagem que não poderia ser mais diferente: a não ser que ajamos, a desigualdade vai se tornar muito pior, vindo eventualmente a tornar as nossas instituições uma piada. Com a riqueza cada vez mais concentrada, os países competindo para concederem mais isenção fiscal ao capital e à herança vindoura, para rivalizar com o empreendendorismo, como fonte de ricos, uma nova elite patrimonial pode se provar tão inevitável como Tocqueville certa feita acreditou a igualdade democrática era.

Essa previsão está baseada, não na especulação, mas em fatos reunidos através de pesquisa prodigiosa. Os números espantosos de Piketty mostram que a distribuição da renda nacional oriunda do capital – que já se acreditou ser estável – está em ascensão. A riqueza privada alcançou novas altas relativas à renda nacional e está se aproximando de níveis de concentração que não se tinha desde antes de 1929.

O movimento intelectual poderoso de Piketty consiste em situar o tema da desigualdade econômica da América num contexto histórico mais amplo e transnacional. As forças responsáveis por nosso igualitarismo passado, lembra-nos Piketty, foram o rápido crescimento – tanto o populacional, como da economia como um todo. A França nunca teve o primeiro, que é a razão por que o país teve uma verdadeira classe “rentista” de proprietários aristocratas no começo do Século XX, quando os EUA ainda era uma terra de pequenos proprietários e de novos ricos. Ainda assim, o crescimento econômico segue como o grande fator: quando a economia se expande modestamente, ano a ano, o retorno em capital excede geralmente o crescimento da renda do trabalho, e as fortunas dos já ricos cresce, ao passo que o resto da sociedade decresce.

Desde o ressurgimento da desigualdade de renda, observadores preocupados vêm se concedendo conforto com a noção de que os donos da riqueza – ainda mais desigualmente distribuída que a renda – não estão se formando tão rapidamente com a renda ela mesma. Se olharmos para frente, no entanto, essa noção reconfortante parece suspeita. Algumas das maiores fortunas constituídas na nova era de ouro financiará a filantropia ou a frivolidade. A maior parte, no entanto, será afunilada de volta, em investimentos de capital ou repassada para herdeiros.
 
Piketty observa que os retornos desses investimentos são invariavelmente maiores para aqueles com maior riqueza – o efeito Matthew (*) é uma outra força de aumento da concentração. Enquanto isso, as heranças estão voltando como uma fonte maior de vantagem para os já avantajados. Enquanto a desigualdade de renda desce até uma pirâmide demográfica que se estreita, podemos esperar que as heranças se tornem uma fonte crescentemente importante de herança de privilégios.

Piketty é acertadamente pessimista quanto a uma resposta imediata. A influência da riqueza na política democrática e em como pensamos a respeito de mérito e recompensas oferece obstáculos formidáveis. Fortalecer a competição internacional para os ricos e os seus dólares leva Piketty a acreditar que, sem um contra-movimento sério, a taxação de capital tenderá a zero. A desigualdade está se tornando um problema tão  “terrível” como a mudança climática – em que a solução deve não apenas superar poderosos interesses entrincheirados em países individuais, como ser global, para ser efetiva.

No entanto, é a taxação do capital e, em última análise, a taxação de capital global, que Piketty vê como solução eventual. Taxar apenas o consumo e a renda do trabalho viola a noção de que indivíduos deveriam financiar a riqueza comum com base em sua capacidade de pagar. Uma taxa global de capital – modesta, progressiva, baseada na transparência – poderia reforçar o conflito entre capacidade econômica e contribuição individual para atividades coletivas. Mais ainda, processo hesitante nessa direção já vem ganhando espaço, na medida em que países ricos visam a – sem grande sucesso, até agora – acabar com os paraísos fiscais e com a engenharia financeira das corporações que cada vez mais tornam a taxação voluntária para os super ricos. Porque a riqueza está ainda tão concentrada nas nações de industrialização avançada, acordos que abarquem cidadãos e transações no interior da Europa e da América do Norte ainda terão um longo caminho pela frente, até que essas atividades sejam trazidas às claras. Uma taxa modesta sobre as grandes fortunas também pode encorajar usos mais produtivos de capital, taxando gradualmente grande patrimônio com pouco retorno.

Piketty sugere que pressões por mudanças eventualmente provar-se-ão convincentes. Ou os capitalistas mais ricos vão se desagregar na competição pela diminuição dos custos, ou o resto da sociedade vai se levantar e impor um quadro mais justo. Para um livro que insiste no primado da política, no entanto, Piketty tem relativamente pouco a dizer a respeito de como – com as organizações ligadas ao mundo do trabalho enfraquecidas, com os interesses da finança fortalecidos, e com as forças anti-governo incentivadas – o tipo de movimento político necessário para a emergência de um futuro mais justo. (Foi afinal a guerra, não o sufrágio universal, que em última análise subjugou a desigualdade no século XX). Ainda assim, talvez com esse livro magistral, as realidades problemáticas que Piketty desenterra tornar-se-ão mais visíveis e as racionalizações do privilégio que as sustentam se tornem menos dominantes. Assim como Tocqueville, Piketty nos deu uma imagem de nós mesmos. Desta feita, uma a que deveríamos resistir, não dar boas vindas

(*) Efeito Mathew: “diz respeito ao fato de que a contribuição de certos cientistas é valorizada mais do que o devido. Este termo foi criado por Robert Merton para descrever como cientistas eminentes quase sempre levam mais crédito que um pesquisador desconhecido, mesmo se o trabalho for similar. Exemplo: John von Neumann é considerado o pai do computador, mas sua contribuição é residual.

Um corolário é o Efeito Matilda que afirma que o trabalho de uma mulher em ciência quase sempre é ignorado”. In: http://www.contabilidade-financeira.com/2008/08/efeito-matthew-e-matilda-em-cincias.html (N.deT).

Tradução: Louise Antônia León
 
(*) Publicado originalmente na The American Prospect

Créditos da foto: Divulgação

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