Espanha,
Grã-Bretanha, Itália e Bélgica podem se dividir. Quem reivindica autonomia. Por
que movimento é respostas às políticas de “austeridade”
Conn Hallinan, do The Nation – Outras Palavras -
Tradução: Antonio Martins
As famílias felizes
são todas parecidas;
cada família infeliz o é à sua maneira”
Leon Tolstoi, Anna Karenina
A abertura do
grande romance de amor e tragédia de Tolstoi poderia ser uma metáfora da Europa
de hoje, onde “famílias infelizes” de catalães, escoceses, belgas, ucranianos e
italianos consideram divorciar-se dos países de que são parte. E, em mais um
caso em que a realidade imita a ficção, cada uma delas é infeliz à sua própria
maneira.
Enquanto os Estados
Unidos e seus aliados exasperam-se com o recente referendo na Crimeia, que
separou a província da Ucrânia, os escoceses viverão uma consulta muito similar
em 18 de setembro e os catalães gostariam muito de fazer o mesmo. Assim como os
habitantes do Tirol do Sul e a população de língua flamenga do
norte da Bélgica.
Na aparência,
muitos destes movimentos de secessão sugerem que regiões ricas estão tentando
“libertar-se” de outras mais pobres. Mas ainda que haja alguma verdade nisso, a
fórmula é muito simplista. No norte da Bélgica, os flamengófonos, mais ricos,
querem separar-se dos francófonos despreocupados do Sul, assim como os
tiroleses gostariam de se separar da Itália meridional, castigada pela pobreza.
Mas na Escócia, muito da luta tem a ver com a preservação do contrato social
que os governos do “novo” Partido Trabalhista – agora conservador – e do
Partido Conservador – de direita – desmantelaram sistematicamente. O caso da
Catalunha, bem, é complicado.
As fronteiras
europeias podem parecer imutáveis, mas certamente não o são. Foram deslocadas
várias vezes – pela guerra, necessidades econômicas ou porque os poderosos
desenharam linhas caprichosas que ignoram a história e a etnicidade. A Crimeia,
conquistada por Catarina, a Grande, em 1783, foi arbitrariamente cedida à
Ucrânia, em 1954. A Bélgica resultou de um congresso das potências europeias,
em 1830. A Escócia, empobrecida, ligou-se à ria Inglaterra, em 1707. A
Catalunha caiu diante dos exércitos espanhol e francês em 1714. E o Tirol do
Sul foi um espólio da Primeira Guerra Mundial.
Em todos os casos,
ruídos históricos, desenvolvimento injusto e tensões étnicas foram exacerbados
por um crise econômica de longa duração. Nada como o desemprego e as políticas
de “austeridade” para acender as fogueiras da secessão. Os dois movimentos
separatistas mais fortes estão na Escócia e Catalunha – e são os que podem ter
impacto mais profundo no resto da Europa.
As regiões são
infelizes de diferentes maneiras.
Escócia
A Escócia sempre
teve um partido nacionalista expressivo, embora marginal – mas foi dominada
tradicionalmente pelo Partido Trabalhista britânico. Os Conservadores quase não
existiam a norte do rio Tweed. Mas o “novo trabalhismo” do ex-primeiro-ministro
Tony Blair adotou cortes de investimentos públicos e privatizações que
marginalizaram muitos escoceses, obrigados a gastar mais com Saúde e Educação
que o resto dos britânicos.
Quando o Partido
Conservador ganhou as eleições, em 2010, seu orçamento de “austeridade”
devastou a Educação, Saúde, os subsídios para Habitação e o Transporte. Os
escoceses, irados, votaram no Partido Nacional Escocês (SNP), nas eleições de
2011 para o parlamento local. O SNP imediatamente propôs um plebiscito que
indagará aos eleitores se querem revogar o Ato de União de 1707 e voltar a ser
um país independente. Se a resposta for sim, o SNP propõe
renacionalizar o correio e expulsar da Escócia os submarinos britânicos
Trident, dotados de mísseis nucleares.
Levando em conta o
petróleo do Mar do Norte, quase não há dúvidas de que uma Escócia independente
seria viável. O país tem um PIB per capita mais alto que o da França e, além de
petróleo, exporta bens industriais e uísque. A Escócia seria um dos 35 países com
maiores receitas de exportação.
O governo britânico
do Partido Conservador diz que, se a Escócia votar pela independência, não
poderá mais utilizar a libra como moeda. Os escoceses dizem que se a ameaça for
mantida, não assumirão mais responsabilidade por sua parcela na dívida pública
britânica. Neste ponto, há um impasse.
Segundo os
britânicos, e alguns tecnocratas em posições de poder na União Europeia (UE),
uma Escócia independente não poderá permanecer integrada ao bloco europeu, mas
isso pode ser um blefe. Primeiro, porque contrariaria precedentes históricos.
Quando a Alemanha reunificou-se, em 1990, cerca de 20 milhões de habitantes do
país oriental (a República Democrática Alemã) foram automaticamente
reconhecidos como cidadãos da UE. Se 5,3 milhões de escoceses foram excluídos,
será por ressentimento, não por política. De qualquer forma, como o Partido
Conservador britânico planeja, em 2017, um referendo que poderia separar a
Grã-Bretanha da União Europeia, Londres não está apostando todas as fichas numa
postura de intransigência…
Se as eleições
fossem hoje, os escoceses provavelmente optariam por permanecer no Reino Unido,
mas as tendências estão mudando. A pesquisa mais recente indica que 40% votarão
pela independência – um avanço de 3 pontos percentuais, em relação à sondagem
anterior. A parcela dos eleitores contrária à independência caiu 2 pontos
percentuais, e agora representa 45% do total. Há 15% de indecisos. Todos os
residentes na Escócia com mais de 16 anos podem votar. Dada a formidável habilidade
eleitoral de Alex Salmod, o primeiro-ministro da Escócia e líder do SNP, as
perspectivas não são tranquilizadoras para o governo de Londres.
Catalunha
A Catalunha,
situada no Nordeste da Espanha bem junto à fronteira com a França, foi sempre
um motor da economia espanhola e uma região marcada por sensação de injustiça
histórica. Conquistada pelos exércitos unidos da França e Espanha, na guerra de
secessão espanhola (1701-1714), foi também derrotada na Guerra Civil espanhola,
entre 1936 e 39. Em 1940, os fascistas, triunfantes, suprimiram o uso do idioma
catalão, reprimiram sua cultura e executaram o presidente da região, Lluis
Companys – um ato pelo qual nenhum governo de Madri desculpou-se até hoje.
Após a morte do
ditador Francisco Franco, em 1975, a Espanha buscou reconstruir sua democracia,
sepultando as animosidades profundas engendradas pela Guerra Civil. Mas os
mortos podem não permanecer enterrados para sempre, e cresce um movimento pela
independência catalã.
Em 2006, a região
conquistou autonomia considerável, mas ela foi revogada pelo Supremo Tribunal
espanhol em 2010, para alegria do Partido Popular (PP, conservador), no poder.
A decisão serviu de combustível para o movimento pela independência da
Catalunha e em 2012 partidos separatistas chegaram ao poder.
O PP, do
primeiro-ministro Mariano Rajoy, é uma preocupação permanente na Catalunha,
cujo parlamento é dominado por diversos partidos independentistas. O maior
deles é a Convergencia i Unio (CiU), do presidente provincial, Artur Mas.
Porém, aEsquerra Republicana de Catalunya (ERC) dobrou, há pouco, sua
representação legislativa.
Estes partidos
divergem entre si. Muitos tendem a ser centristas ou conservadores, enquanto o
ERC é de esquerda e se opõe às políticas de “austeridade” do PP – algumas das
quais foram adotadas também pelo CiU. O centrismo deste partido é uma das
razões pelas quais sua bancada caiu de 62 deputados para 50, nas eleições de
2012, enquanto a do ERC saltou de dez para 21.
A taxa oficial de
desemprego na Espanha é de 25%, mas o índice é bem mais alto entre os jovens e
nas regiões do Sul – e a esquerda parece disposta a ir à luta. Mais de 100 mil
pessoas marcharam em Madri, no mês passado, exigindo o fim da “austeridade”.
Dizendo apoiar-se
na Constituição de 1976, Rajoy recusa-se a permitir um referendo de
independência, uma intransigência que alimentou a chama do movimento
separatista. Em janeiro, o parlamento catalão votou, por 87 a 43, por realizar
o referendo, e as pesquisas mostram uma maioria em favor da separação. Há seis
meses, um milhão e meio de catalães marcharam em Barcelona pela independência.
De olho no
eleitorado de direita, o PP também radicalizou e parece disposto a provocar os
catalães. Quando a Catalunha proibiu as touradas, Madri aprovou uma lei que as
considera herança cultural da nação. Os bascos podem arrecadar seus próprios
impostos; os catalães, não.
Como a União
Europeia reagiria a uma Catalunha independente? E o governo central de Madri
faria algo para impedir o passo? É difícil imaginar o envolvimento do exército
espanhol, embora o partido de Rajoy tenha entre seus fundadores um ex-ministro
do governo franquista e a reivalidade entre Madri e Barcelona seja evidente.
Outras linhas de
ruptura
Há outras linhas de
ruptura na Europa.
A Bélgica poderá se
dividir? A fissura entre os flamengófonos (no norte) e os francófonos (no sul)
é tão profunda que foram necessários dezoito meses para formar um governo, após
a última eleição. E se a pequena Bélgica rachar, ela dará origem a dois países,
ou será engolida pela França e Holanda?
Na Itália, o
Partido da Liberdade do Tirol do Sul reivindica um referendo de independência e
uma fusão com a Áustria, embora a minúscula província, – chamada na Itália e Alto
Adige – quase não tenha do quê se queixar. Ela retém 90% dos impostos
que arrecada, e sua economia conseguiu evitar o pior da crise de 2008. Mas
parte da população germano-austríaca ressente-se de cada centavo transferido a
Roma e há um profundo preconceito contra os italianos – que constituem 25% dos
habitantes – particularmente, os do Sul. Nesse sentido, o Partido da Liberdade
não é muito diferente da Lega Norte, racista e elitista, que tem como
base o Vale do Po.
É instrutivo
assistir a um vídeo,
no YouTube, sobre como as fronteiras da Europa mudaram, de 1519 a 2006 – um
período de menos de 500 anos. O que julgamos eterno é efêmero. O continente
europeu está novamente à deriva, tensionado por linhas de ruptura antigas e
contemporâneas. A atitude de países como Espanha e a Grã-Bretanha, e de
organizações como a União Europeia diante deste processo determinará seu
caráter – se civilizado ou doloroso. Mas tentar interrompê-lo causará, muito
provavelmente, apenas mais dor.
Na foto: Barcelona,
2013: 1,5 milhão de pessoas nas ruas, pela independência da Catalunha. Esquerda
cresce entre movimento, e reivindica fim das políticas de “austeridade”
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