- Uma análise
marxista do fenómeno da corrupção, sem falsos moralismos
- A nova acumulação primitiva do grande capital
- Porque a política e os políticos tradicionais se tornam irrelevantes para o
povo
- O deslizamento para o fascismo promovido pela elite corporativo-financeira
- O que podem fazer as forças progressistas?
- Grande parte desta análise é válida também para Portugal e muitos outros
países
Prabhat Patnaik [*]
A viabilidade da
democracia exige uma crença entre o povo de que pode fazer alguma diferença
para a sua vida a participação no processo democrático. Esta crença pode ser
falsa; pode ser uma mera ilusão. Mas se esta ilusão não existir, o povo
torna-se não só cínico acerca do processo democrático como descrente da capacidade
de os seus próprios esforços poderem influenciar as suas vidas. Tal descrença
leva então à busca de um "salvador" ou um "messias"
supostamente dotado de poderes extraordinários que possa vir salvá-lo. Ele
afasta-se portanto "do lado da razão" e começa a mover-se na esfera
do irracionalismo.
Uma vez que estamos no período de hegemonia do capital monopolista, tais
"salvadores" e "messias" são tipicamente fabricados, ou
promovidos, ou, mesmo naquelas instâncias em que o avanço inicial se dá por si
próprio, apropriados pela elite corporativo-financeira, a qual utiliza para
este objectivo os media sob o seu controle e o seu domínio torna-se sinónimo do
domínio corporativo. E isto constitui o cerne do fascismo. (Mussolini, pode-se
recordar aqui, havia escrito: "O fascismo deveria mais
apropriadamente ser chamado Corporativismo porque é uma fusão do estado e do
poder corporativo".) A perda entre o povo da crença na possibilidade de
que a sua vida seja influenciada através da intervenção no processo democrático
cria portanto as condições para o fascismo.
O caso da República de Weimar ilustra este ponto. Aos olhos do
povo houve uma perda de legitimidade da República de Weimar, a qual decorreu do
facto de o fardo das reparações impostas sobre a Alemanha pelas potências
aliadas vitoriosas, através do Tratado de Versalhes, tornou impossível para
sucessivos governos eleitos fazerem qualquer diferença para as condições
miseráveis às quais o povo alemão fora reduzido. Esta perda de legitimidade foi
o factor principal para o facto de o povo alemão sucumbir à sedução do nazismo.
Mas o fracasso da República de Weimar podia pelo menos ser atribuído aos termos
específicos do tratado de paz (contra os quais Keynes protestou no seu tempo).
Na era da "globalização" não só há uma perda semelhante de crença
entre o povo acerca da impossibilidade de alcançar qualquer mudança através da
intervenção política por meio dos canais democráticos formais disponíveis como
também esta perda de crença reflecte uma realidade incorporada dentro do
próprio sistema. Por outras palavras, a tendência sob o neoliberalismo é
produzir entre o povo uma conjuntura caracterizada por esta perda de crença na
eficácia das instituições democráticas, uma conjuntura que é portanto
conducente ao crescimento do irracionalismo e do fascismo.
Apresentando o assunto de modo diferente, o neoliberalismo tende a produzir um
"fechamento" no âmago da política, onde as opções políticas
disponíveis para o povo são todas caracterizadas por políticas económicas
idênticas, razão pela qual a escolha política do povo pouca diferença faz para
as suas condições materiais .
Este "fechamento" não é simplesmente uma questão de percepção. Hegel
viu o processo histórico como que a alcançar um fim com a formação do estado
prussiano. A economia política clássica, a qual teve um desenvolvimento
paralelo ao do hegelianismo no âmago da filosofia, viu o fim da história na
emergência do modo de produção capitalista. Mas estas eram apenas percepções. O
neoliberalismo tende espontaneamente a produzir uma conjuntura
real onde a política tende a atingir um beco sem saída semelhante:
ao invés de abrir possibilidades alternativas políticas genuínas diante do
povo, ele tende a fechá-las, a fazer estas alternativas indistinguíveis umas
das outras na perspectiva da condição material dos povos. E a frustração dos povos
redunda no irracionalismo, em formas de fascismo. Mas porque o neoliberalismo
produz tal tendência para um "fechamento"? Vamos enfrentar esta
questão.
I
A razão mais
importante para isto é também a mais bem conhecida, pelo que não gastaremos
muito tempo com ela. A globalização implica o movimento livre de bens e
serviços através dos países e, acima de tudo, do capital, inclusive na forma
financeira. Uma vez que nesta era o capital se torna globalizado enquanto os
Estados permanecem como estados-nação, a política de estado por toda a parte
deve ser uma que retenha a "confiança dos investidores", isto é,
agrade os caprichos do capital globalizado, pois do contrário o capital
abandonaria en masse as costas do país em causa, precipitando com
isso uma crise aguda. O desejo de impedir uma tal crise força todas as
formações políticas dentro do país, desde que considerem a sua permanência
dentro da estrutura da globalização, ou seja, desde que não considerem uma
retirada da globalização através da imposição de controles do capital e do
comércio, força a adopção de agendas aceitáveis para o capital globalizado.
Isto portanto nega efectivamente qualquer escolha política para o povo. Não
importa quem seja eleito, não importa qual governo particular venha a ser
eleito em consequência da escolha exercida pelo povo, ele quer queira quer não
adopta o mesmo conjunto de políticas "neoliberais".
Nós o vimos no nosso próprio país, onde as políticas económicas básicas da UPA ,
da NDA e mesmo da "terceira
frente" quando esteve brevemente no poder, eram as mesmas. E
mesmo hoje quando muito está a ser preparado com a próxima escolha eleitoral
entre Rahul Gandhi e Narendra Modi, dificilmente há alguma diferença básica
entre eles sobre assuntos de política económica. De facto o próprio Modi
enfatiza que a superioridade da UPA reside na sua maior capacidade para a
"governação" e não em quaisquer políticas basicamente diferentes
respeitantes aos meios de vida do povo. Isto só ilustra a ausência de escolha
genuína para o povo em assuntos de política económica na era da globalização.
Contudo, além deste factor básico, verificam-se nesta era mudanças importantes
na estrutura de classe do país que tendem a impossibilitar a busca de qualquer
trajectória alternativa. A essência destas mudanças está numa redução da força
dos trabalhadores e camponeses. O facto de que a política de estado tende a
centrar-se no apaziguamento do capital financeiro implica uma retirada do
Estado do seu papel no apoio e protecção da pequena produção contra o assalto do
grande capital. Isto expõe pequenos produtores (tais como camponeses, artesãos
e pescadores), e também pequenos comerciantes, a um processo de expropriação.
Tal expropriação ocorre tanto através de uma tomada directa dos seus activos
pelo grande capital, como a terra, a preços de saldo, como através de uma
redução no seu "fluxo" de rendimentos e portanto na sua capacidade
para sobreviver, isto é, para continuar com a "reprodução simples".
Os despojados pequenos produtores aglomeram-se em áreas urbanas em busca de
trabalho, aumentando o número dos que estão em busca de emprego.
Ao mesmo tempo, o número de empregos decentes mal aumenta numa economia
neoliberal, mesmo quando uma tal economia está a experimentar crescimento
rápido. Na Índia, por exemplo, mesmo durante o período de crescimento
extraordinariamente alto, o número daqueles que informavam o seu "status
habitual" como empregados, ao National Sample Surveys efectuado em 2004-5
e 2009-10, aumentou em 0,8 por cento ao ano. Com o crescimento populacional
estando em torno dos 1,5 por cento ao ano, o qual pode ser tomado como a taxa
de crescimento "natural" da força de trabalho, e com pequenos
produtores arruinados a somarem-se ainda mais ao número de desempregados, e
levando a taxa de crescimento daqueles em busca de emprego bem acima de 1,5 por
cento, uma taxa de crescimento de meros 0,8% em empregos decentes deve ter
implicado um aumento substancial na proporção do "exército de reserva do
trabalho". Isto leva a um rebaixamento do poder de negociação dos
trabalhadores.
A acrescentar a isto há ainda um outro factor, nomeadamente um
embaciamento da distinção entre o exército activo e exército de reserva.Normalmente
pensamos o exército activo como estando plenamente empregado e o de reserva
como estando desempregado (ou sub-empregado). Mas suponha-se uma força de
trabalho de 100, ao invés de 90 estarem empregados e 10 desempregados,
realmente temos toda a gente empregada durante apenas nove décimos do
tempo, temos então um apagamento da distinção entre o exército
"activo" e o de "reserva", através de uma "regra
de racionamento do emprego" diferente. O aumento na magnitude
relativa do trabalho casual, do trabalho informal, do trabalho intermitente, do
"auto-emprego" que não é da espécie tradicional (tal como os
camponeses) constitui um novo fenómeno que reflecte a ausência de empregos
decentes, é uma indicação desta mudança na regra de racionamento do emprego. Se
o aumento na dimensão relativa do desemprego enfraquece a posição dos
trabalhadores, então esta mudança na regra de repartição do emprego agrava
ainda mais o problema.
Não só há uma mudança na "regra de repartição de emprego" como há
também uma mudança na própria "regra do emprego", onde há recurso cada
vez maior ao contrato de trabalho ao invés do trabalho permanente, à
terciarização ("outsourcing") de actividades para patrões
que empregam trabalhadores contratados, dos patrões maiores que antes estavam a
empregar equipes permanentes para fazer o mesmo trabalho (sendo as ferrovias um
exemplo clássico disto), e assim por diante. Isto também tem o efeito de
reduzir o poder negocial e na verdade o poder de greve dos trabalhadores.
Dois outros factores actuam na mesma direcção. Um é a privatização, a qual
ganha momento na era da globalização. A percentagem de trabalhadores
sindicalizados geralmente é maior no sector público do que no sector privado em
todo o mundo capitalista. Nos Estados Unidos por exemplo enquanto apenas oito
por cento dos trabalhadores do sector privado são sindicalizados, o rácio no
caso dos trabalhadores do sector governo (isto inclui professores também) é
cerca de um terço. A privatização das actividades do sector governo tem
portanto o efeito de reduzir a extensão da sindicalização e assim, mais uma
vez, o poder de greve dos trabalhadores. O facto de que a França, mais do que
outros países avançados, tenha assistido nos últimos anos a um certo número de
grandes greves deve-se em não pequena medida ao peso do seu sector público ser
maior do que em outros lugares.
O outro é a introdução do "mercado de trabalho flexível" pelo qual
mesmo a protecção muito limitada (por meio de um período mínimo de aviso prévio
a trabalhadores antes da demissão) oferecida a um segmento muito limitado de trabalhadores
(aqueles empregados em fábricas acima de uma certa dimensão) procura ser
afastada através de emendas nas leis trabalhistas. Isto ainda não foi
introduzido na Índia, embora a pressão nesse sentido seja imensa. Esta pressão
para a "flexibilidade do mercado de trabalho" pode parecer
surpreendente dado o número limitado dos afectados por esta medida, mas a ideia
é precisamente incapacitar trabalhadores que estão em grandes unidades em
sectores chave e têm a maior capacidade de greve.
Todas estas mudanças, na composição, no poder negocial e nos direitos legais
dos trabalhadores têm o efeito de degradar o poder político da classe
trabalhadora. Um enfraquecimento de sindicatos ipso facto também
enfraquece o peso político da classe trabalhadora e sua capacidade para avançar
qualquer programa sócio-económico alternativo e para mobilizar o povo em torno
de um tal programa. Portanto, o aumento do poder político da elite
corporativo-financeira, integrada no mundo globalizado da finança, tem como sua
contrapartida um declínio no poder político da classe trabalhadora, bem como do
campesinato e dos pequenos produtores que são empurrados cada vez para a
penúria e a miséria. A era da globalização provocou portanto uma mudança
decisiva no equilíbrio das forças de classe.
II
Há que notar pelo
menos duas consequências importantes desta mudança. Primeiro, o declínio na
política de classe é acompanhado pelo fortalecimento da "política de
identidade". Naturalmente, a expressão "política de identidade"
é enganosa uma vez que agrupa movimentos de espécies muito diferentes e mesmo
diametralmente opostas sob uma única expressão abrangente. É mais útil
distinguir aqui entre três fenómenos distintos: "política de resistência da
identidade" tal como o que caracteriza os dalit (intocáveis)
ou os movimentos de mulheres (embora estes também tenham suas
próprias especificidades); "política de negociação da
identidade" tal como quando os [de etnia] Jad pedem o status de
"casta atrasada" a fim de melhorar sua própria posição pelo
aproveitamento de "reservações"; e "política fascista de
identidade" (da qual o comunal-fascismo é o exemplo óbvio), a qual, embora
se baseie em "grupos de identidade" particulares e façam campanhas
virulentas contra alguns outros "grupos de identidade" alvos, é
apoiada e alimentada pela elite corporativo-financeira e temo efeito de
realmente promover interesses corporativosao invés dos do grupo de
identidade em cujo nome é organizado.
Se bem que estas três formas de "política de identidade" difiram
amplamente entre si, o declínio da política de classe tem impacto importante
sobre todas elas. Dá um incentivo à "política de negociação da
identidade" por parte de grupos particulares cujos membros já não podem
mais actuar eficazmente através de organizações de classe. Dá também um
incentivo à "política fascista de identidade" porque a hegemonia da
elite corporativo-financeira exige o reforço de tais políticas. Quanto à
"política de resistência da identidade", o declínio geral da política
de classe no país tende a desradicalizar também essa política e pressionar na
direcção da mera política de negociação da identidade. No todo, o declínio na
política de classe fortalece aquelas formas de "política da
identidade" que não ameaçam o sistema, mas que, pelo contrário, reduzem
qualquer desafio ao mesmo ao contrapor uma secção do povo contra outra. Isto
provoca um atraso ao projecto, de destruição da "comunidade antiga"
que existia no país sob o sistema feudal com base na casta e na formação de uma
"comunidade nova" entre o povo, que a democracia exige.
A segunda implicação é uma manifestação deste atraso e consiste numa
lumpenização da sociedade. O sistema capitalista tem a peculiaridade de que a
sua viabilidade social decorre não devido à lógica do próprio sistema
mas apesar desta lógica. Um mundo no qual os trabalhadores –
desenraizados de diversos ambientes e desconcertados no seu conjunto – são
atomizados e competem furiosamente uns contra os outros, o que é a lógica que o
capitalismo exige, seria um mundo impossível e socialmente inviável (porque
dificilmente nele haveria qualquer "sociedade"). A viabilidade social
sob o capitalismo surge porque contra a sua lógica os trabalhadores,
que inicialmente se desconhecem, formam "combinações" que se
desenvolvem através de sindicatos dentro de instituições de classe, dando
origem ao que acima chamámos de uma "nova comunidade".
Isto tornou-se possível anteriormente sob o capitalismo devido, dentre outras
coisas, à emigração em grande escala das metrópoles para as novas regiões de
assentamento de brancos, a qual permitiu ao exército de reserva interno
permanecer limitado em dimensão relativa e aos sindicatos tornarem-se
poderosos. Uma tal possibilidade de emigração não existe hoje para os
trabalhadores do terceiro mundo e o neoliberalismo, como vimos, amplia a
dimensão relativa do desemprego e enfraquece sindicatos e as instituições
colectivas da classe trabalhadora. A consequente deriva rumo à atomização, o peso
crescente do lumpen proletariado, a ausência ou progressivo enfraquecimento de
laços sociais entre trabalhadores, lançados em conjunto dos diversos ambientes
de origem, provoca uma tendência pronunciada à lumpenização. Certamente tal
lumpenização existe em todas as sociedades capitalistas, mas a sua contenção
exercida pelas instituições colectivas da classe trabalhadora no capitalismo
metropolitano, o seu próprio enfraquecimento sob o neoliberalismo, torna
ineficaz no terceiro mundo regimes que estão sob o cativeiro do neoliberalismo.
O crescimento de crimes contra mulheres na Índia de hoje na minha opinião não
está desligado deste fenómeno.
III
Há ainda um outro
ponto acerca do ambiente neoliberal para o qual devemos nos voltar e este
relaciona-se com a "corrupção". Uma tal economia, como vimos,
caracteriza-se por uma tendência marcada rumo à expropriação de pequenos
produtores pelo grande capital. Mas a pequena propriedade não é o alvo final.
Ela recolhe para si própria, ou de forma grátis ou a preços de saldo,
não apenas a pequena propriedade mas também a propriedade comum, a propriedade
tribal e a propriedade do estado. O período do neoliberalismo, por outras
palavras, assiste a um processo de "acumulação primitiva de capital" com
uma vingança, para a qual a aquiescência ou cumplicidade do pessoal do estado é
essencial. Tal aquiescência é obtida, além do elemento geral de compulsão que
cada estado-nação enfrenta em assuntos políticos na era da globalização que
mencionámos anteriormente, pelo pagamento de um preço ao qual chamamos
"corrupção".
O que chamamos de "corrupção" constitui com efeito um tributo imposto
pelo pessoal do estado, incluindo acima de tudo a "classe política",
sobre os ganhos de acumulação primitiva obtidos pelo grande capital. É
instrutivo que todos os casos importantes de "corrupção" que
recentemente têm estado em foco na Índia, tal como a concessão do espectro 2G
ou a concessão do bloco do carvão, tenham envolvido a entrega de propriedade do
Estado a capitalistas privados por quase nada, e aqueles que tomaram decisões
acerca de tais entregas tenham obtido comissões clandestinas a que nós chamamos
"corrupção". "Corrupção", portanto, é essencialmente um
imposto sobre a acumulação primitiva de capital e seu ímpeto recente é porque
regimes neoliberais testemunham uma desenfreada acumulação primitiva de
capital.
Um tal imposto, na forma de "corrupção", tem de ser visto no contexto
de dois factores particulares. O primeiro é a mercantilização da política. O
próprio facto de que diferentes formações políticas, se permanecerem dentro dos
limites de um regime neoliberal, não poderem ter agenda económicas diferente
implica que tenham de concorrer pela aprovação do povo através de alguns
outros meios. Isto tipicamente envolve o "marketing" de si
próprios: pela contratação de firmas de publicidade, pelo plantio de
"notícias pagas" nos media, pela contratação de helicópteros para
viajar a tantos lugares quanto possível, de modo a melhorar a própria
visibilidade, e assim por diante. Tudo isto são práticas altamente
dispendiosas, razão pela qual a política torna-se exigente em termos de
recursos – e os partidos políticos têm de alguma forma de encontrar estes
recursos.
Além disso, mesmo quando a "classe política" precisa de mais recursos
para avançar, ela torna-se menos importante quanto ao seu papel na
tomada de decisão. Pessoal do Banco Mundial, do FMI, de bancos multinacionais e
de outras instituições financeiras, isto é, da generalidade da "comunidade
financeira global", ocupa cada vez mais as posições chave de tomada de
decisão no governo, uma vez que o capital financeiro internacional é avesso a
deixar a tomada de decisões económicas nas mãos da classe política tradicional.
A "classe política" tradicional", naturalmente, ressente-se
disto. Ela pode ficar reconciliada com esta situação somente se lhe for
permitido arrecadar alguma coisa para si própria. E essa "alguma
coisa" consiste nas receitas do imposto sobre a acumulação primitiva do
capital, na forma de "corrupção", a qual também é necessária de
qualquer forma devido à mercantilização da política.
A "corrupção" desempenha portanto um papel funcional num regime
neoliberal. Ela não é simplesmente o resultado de uma súbita perda de
"fibra moral" na "classe política", ela é endémica ao
capitalismo neoliberal. O efeito da "corrupção" gerada pelo
capitalismo neoliberal é útil para a elite corporativo-financeira ainda por uma
outra razão. Ela desacredita a "classe política", ela arrasta o
descrédito sobre o parlamento e outras instituições da democracia
representativa e, ao mesmo tempo, através da hábil manipulação dos holofotes,
através dos media por ela controlados, a elite corporativo-financeira assegura
que nem uma pitada de humilhação moral abra caminho para estes actos de "corrupção".
O discurso da "corrupção" facilita a solene introdução do domínio
corporativo através do desmantelamento de obstáculos que o estorvam.
IV
As matérias de
facto não acabam aí. Já vimos que o período do neoliberalismo produz um
incremento na dimensão relativa do desemprego que aflige a força de trabalho,
razão pela qual provoca um aumento na dimensão relativa da população
absolutamente empobrecida. Os pequenos produtores, quer sobrevivam nas suas
ocupações tradicionais quer migrem para áreas urbanas em busca de escassas
oportunidades de emprego, experimentam uma pioria nos seus padrões de vida
absolutos. Os novos acréscimos à força de trabalho experimentam piores
condições materiais de vida pessoal do que os seus antepassados precisamente
devido ao desemprego crescente. E mesmo aqueles trabalhadores que conseguem
obter emprego decente, não podem manter seus salários reais aos níveis
anteriores à liberalização devido à pressão da competição proveniente do
crescimento da dimensão relativa do exército de reserva do trabalho. O
empobrecimento absoluto, afectando não só grandes como crescentes segmentos da
população trabalhadora, torna-se a ordem do dia.
Este é um ponto que Utsa Patnaik tem destacado desde há muito. Seus cálculos
baseados nos dados do National Sample Survey mostram que a percentagem de
população urbana que tem acesso a menos do que 2100 calorias por pessoa por dia
(a referência oficial para "pobreza urbana"), que era 57 em 1993-94,
aumentou para 64,5 em 2004-5 e, mais uma vez, para 73 em 2009-10. Os números
percentuais para população rural com menos do que 2200 colorias por pessoa por
dia (mais uma vez a referência oficial da "pobreza rural") para os
mesmos anos foram: 58,5, 69,5 e 76, respectivamente. É digno de nota que
o período de alto crescimento do PIB, dentro do qual cabem os anos 2004-05 a
2009-10, testemunhou um aumento substancial da pobreza. O aumento da pobreza
sob o neoliberalismo é em suma um fenómeno sistémico enraizado na própria
natureza deste regime económico; ele não é necessariamente negado pelo alto
crescimento.
Mas o discurso promovido pela elite corporativo-financeiro, e os media que ela
controla, sustentam que a "corrupção" é a causa das dificuldades
económicas do povo e portanto da pobreza crescente. A acusação de uma tendência sistémica sob
o neoliberalismo é portanto colocada à porta não do sistema ou da elite
corporativo-financeira que está no leme, mas à porta da "classe
política" e das instituições democráticas incluindo o parlamento onde ela
está representada. Portanto as tendências imanentes do sistema para
miserabilizar o povo são ironicamente utilizada para apoiar o sistema aos olhos
do povo, para legitimar o domínio do próprio capital corporativo que está nos
comandos do sistema.
Isto torna-se particularmente importante num período de crise tal como aquele
que a economia indiana agora experimenta. O período de alto crescimento está
ultrapassado, o que não é surpreendente: o crescimento sob o neoliberalismo
depende essencialmente da formação de "bolhas" baseadas sobre
expectativas eufóricas. A fase alta de crescimento na Índia foi baseada numa
combinação de uma "bolha" internacional e de uma "bolha"
interna, as quais estavam destinadas ao colapso mais cedo ou mais tarde. A
primeira entrou em colapso em 2008 e a última uns poucos anos depois.
Esta crise significa que a taxa de crescimento do emprego desacelera ainda
mais, piorando a posição não só do povo trabalhador como um todo que já estava
esmagado durante o próprio boom, como também da classe média urbana que era uma
beneficiária significativa do boom. Mas o discurso gerado sob a égide da elite
corporativo-financeira, exclusivamente contra a "classe política",
não só desvia a cólera do povo do sistema económico e contra instituições
democráticas incluindo o parlamento, como cria a percepção de que um
neoliberalismo mais "muscular" e brutal é a necessidade do momento. E
isto, assim vai a argumentação, é o que a "classe política"
despedaçada pela "corrupção" não pode providenciar, ao passo que a
elite corporativo-financeira e seus agentes políticos de confiança como
Narendra Modi, os quais são projectados como "homens do
desenvolvimento", podem. O caminho é deste modo limpo para a dominação
corporativa, isto é, o fascismo.
V
A transição para o
fascismo, é desnecessário dizer, não deve ser vista como um episódio único, um evento que
se verifica quando um indivíduo particular chega ao poder. A este respeito
temos de cessar de nos aprisionarmos ao paradigma da década de 1930. Hoje na
Índia há áreas vastas, como em Uttar Pradesh por exemplo, onde uma juventude
muçulmana pode ser presa e mantida no cárcere durante anos sucessivos sem
julgamento e sem fiança, sob a mera suspeita de ser um "terrorista".
Eles não podem obter assistência legal, porque advogados geralmente recusam-se
a assistir um "terrorista", e aqueles advogados que são bastante
corajosos para proporcionar assistência legal enfrentam violência às mãos de
forças comunais-fascistas. Se o acusado for bastante feliz para ver o fim do
julgamento após uma década ou mais, e ainda mais feliz por ser absolvido apesar
da ausência de defesa legal adequada, ele ainda enfrenta a humilhação de ser um
"terrorista" na percepção pública e permanece sem emprego; e nenhuma
acção chega a ser adoptada contra aqueles que o prenderam e o mantiveram no
cárcere durante vários preciosos anos da sua vida.
Da mesma forma, bem mais de uma centena de trabalhadores da fábrica Maruti [1] próxima
de Delhi estiveram no cárcere durante meses a fio sem qualquer julgamento e sem
fiança ou mesmo livramento condicional, pela suspeita de assassinarem um único
indivíduo (o qual eles não podiam ter qualquer razão concebível para
assassinar) sem sequer qualquer investigação adequada.
Uma tal situação, a que chamo "fascismo mosaico", já existe no país.
Se por acaso os elementos comunais-fascistas, que são apoiados pela elite
corporativo-financeira, chegarem ao poder após as eleições seguintes, eles
teriam de depender do apoio de centros de poder local a prosperarem sobre o
poder musculado de elementos lumpenizados, tal como o que encontramos em
Bengala Ocidental. Estes centros de poder local não estão directamente ligados
à elite corporativo-financeiro e portanto não podem ser chamados directamente
de fascistas; mas eles podem ajudar a sustentar um sistema fascista no topo.
Por outras palavras, a partir do "fascismo mosaico" o país podia
muito bem efectuar uma transição para "fascismo federado" sem
necessariamente experimentar um fascismo integrado e um episódio único.
Nada disto, contudo, modifica o argumento básico deste documento, nomeadamente
de que o "fechamento da política" efectuado pelo neoliberalismo
prepara o terreno para uma transição para o fascismo e que esta transição ganha
momento num período de crise tal como o que atravessamos hoje.
VI
A questão que
naturalmente se levanta é: o que podem fazer as forças progressistas
nesta situação? Contra as percepções da filosofia hegeliana e da economia
política inglesa acerca do fim da história, Marx viu o proletariado como um
agente de mudança, não apenas para prosseguir a história mas para efectuar a
libertação da espécie humana da própria "armadilha da história".
Aquela análise básica permanece válida e deve informar a prática, não obstante
o enfraquecimento da política de classe efectuado pelo neoliberalismo. Este
enfraquecimento, contudo, exige não apenas uma mudança para novos terrenos
quanto à organização de trabalhadores, tais como por exemplo organizar
trabalhadores até agora não organizados, trabalhadores domésticos, etc, como
também novos tipos de intervenção para a política de classe.
A política de classe deve intervir mais resolutamente na "política de
resistência da identidade" e levantá-la para além da mera política de
identidade. Deve intervir mais resolutamente na organização da resistência dos
dalits, dos muçulmanos, da população tribal e das mulheres contra a opressão, e
também assegurar que se o alívio proporcionado a um grupo de identidade particular
for a expensas de outro, então este último também seja organizado para resistir
a uma tal passagem do fardo. Por outras palavras, a diferença entre política de
classe e "política de resistência da identidade" repousa não em terem
diferentes pontos de intervenção mas no facto de que estas últimas executam a
sua intervenção, mesmo sobre questões de "resistência da identidade do
grupo" para além da própria "identidade do grupo". Dito de modo
diferente, a falha em intervir sobre questões de opressão de casta ou de género
é uma falha da própria política de classe, não um sintoma da política
de classe.
Da mesma forma, a política de classe deve colocar-se a questão de uma agenda
alternativa. Ela deve focar em particular, como uma "exigência transicional"
na luta contra o sistema, a institucionalização de salvaguardas contra a
pauperização como um assunto de "direito" do povo. Deve, por exemplo,
fazer campanha pela institucionalização, e por em acção se dada uma
oportunidade, um conjunto de direitos universais, tais como direito à
alimentação, direito ao emprego, direito a cuidados de saúde gratuitos
financiados publicamente, direito à educação gratuita de qualidade até um certo
nível e direito a pensão de reforma e assistência à invalide que assegure uma
vida digna.
À primeira vista tudo isto pode parecer mera agenda de ONG, nada tendo a ver
com política de classe. Mas a diferença fundamental entre política de classe e
política de identidade ou política de ONG repousa não tanto nas questões de que
se ocupam e sim na epistemologia subjacente ao empenhamento nestas questões. A
política de classe, ao ocupar-se destas questões visualiza a possibilidade da
sua resolução através de uma transcendência do sistema; e este facto, longe de
ser um constrangimento sobre ela, é o que a estimula a tratar de tais questões.
A política das ONG, pelo outro lado, ocupa-se apenas de tais questões, ou
trata-as só até certa medida, na medida em que são possíveis de resolução
dentro do sistema. De facto, a tese deste documento é precisamente alterar
desta maneira a perspectiva sobre a política de classe.
O argumento de que o país não tem recursos para por em prática a exigência
destes direitos é inválida. Eles exigiriam no máximo cerca de 10 por cento do
produto interno bruto; e num país onde os ricos são tão levemente tributados
como na Índia, arrecadar os recursos extras desta grandeza não apresenta
qualquer problema inultrapassável. O constrangimento real para a sua realização
é o regime neoliberal e isto é precisamente o que a esquerda deve tratar
com determinação. E uma vez que chegue ao poder, deve trabalhar pela sua
realização pelo pressionamento nas fronteiras do que é "permissível".
O que se exige para isto, acima de tudo, é não ficar hegemonizado pela lógica
do neoliberalismo. A condição para impedir o assalto de neoliberalismo à
democracia e para avançar em frente através de uma defesa da democracia para
uma luta pelo socialismo é rejeitar a hegemonia neoliberal e lutar por uma
contra-hegemonia contra as ideias do neoliberalismo. Os escritores têm um papel
a desempenhar nesta luta de ideias.
[1]
Os constrangimentos na mobilização de trabalhadores na era do neoliberalismo
podem ser avaliados pelo facto de que na fábrica Maruti localizada nos
subúrbios da própria Delhi, um trabalhador visto a conversar com um
sindicalista ou encontrado na posse de um panfleto enfrenta a perspectiva da
demissão.
Do mesmo autor em resistir.info:
O original encontra-se em People's
Democracy , vol. XXXVIII, nº 9, 02/Março/2014. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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