Boaventura Sousa
Santos – Visão, opinião
Suspeito que tarde
ou cedo vai surgir em Portugal o partido do homem e da mulher comuns. Será a
resposta política aos que, aproveitando um momento de debilidade, destruíram em
três anos o que construímos durante 40
Escrevo esta
crónica da Índia, onde tenho estado nas últimas três semanas. Na década
passada, a Índia foi avassalada pelo mesmo modelo de desenvolvimento neoliberal
que a direita europeia e seus agentes locais estão a impor no Sul da Europa. As
situações são dificilmente comparáveis mas têm três características comuns:
concentração da riqueza, degradação das políticas sociais (saúde e educação),
corrupção política sistémica, envolvendo todos os principais partidos
envolvidos na governação e setores da administração pública.
A frustração dos
cidadãos perante a venalidade da classe política levou um velho ativista
neo-gandhiano, Anna Hazare, a organizar em 2011 um movimento de luta contra a
corrupção que ganhou grande popularidade e transformou as greves de fome
do seu líder num acontecimento nacional e até internacional. Em 2013, um vasto
grupo de adeptos decidiu transformar o movimento em partido, a que chamaram o
Partido do Homem Comum (Aam Aadmi Party, AAP).
O partido surgiu
sem grandes bases programáticas, para além da luta contra a corrupção, mas com
uma forte mensagem ética: reduzir os salários dos políticos eleitos, proibir a
renovação de mandatos, assentar o trabalho militante em voluntários e não em
funcionários, lutar contra as parcerias público-privadas em nome do interesse
público, erradicar a praga dos consultores através dos quais interesses
privados se transformam em públicos, promover a democracia participativa como
modo de neutralizar a corrupção dos dirigentes políticos. Dada esta base ética,
o partido recusou-se a ser classificado como de esquerda ou de direita, dando
voz ao sentimento popular de que, uma vez no poder, os dois grandes
partidos de governo pouco se distinguem.
Em dezembro
passado, o partido concorreu às eleições municipais de Nova Delhi e, para
surpresa dos próprios militantes, foi o segundo partido mais votado e o único
capaz de formar governo. O governo foi uma lufada de ar fresco, e já em
fevereiro o AAP era o centro de todas as conversas. Consistente com o seu magro
programa, o partido propôs duas leis, uma contra a corrupção e outra
instituindo o orçamento participativo no governo da cidade, e exigiu a redução
do preço da energia elétrica, considerado um caso paradigmático de corrupção
política. Como era um governo minoritário, dependia dos aliados na assembleia municipal.
Quando o apoio lhe foi negado, demitiu-se em vez de fazer cedências. Esteve 49
dias no poder e a sua coerência fez com que visse aumentar o número de adeptos
depois da demissão.
Perplexo, perguntei
a um colega e amigo, que durante 42 anos fora militante do Partido Comunista da
Índia e durante 20 anos membro do seu comité central, o que o levara a aderir
ao AAP. "Fomos vítimas do veneno com que liquidámos os nossos melhores,
favorecendo uma burocracia cujo objetivo era manter-se no poder a qualquer
preço. É tempo de começar de novo e como militante-voluntário de base",
respondeu-me. Outro colega e amigo, socialista e votante fiel do Partido do
Congresso (o centro-esquerda indiano), disse-me: "Aderi ao AAP quando o vi
a enfrentar Mukesh Ambani, o homem mais rico da Ásia, cujo poder de fixar as
tarifas de eletricidade é tão grande quanto o de nomear e demitir ministros,
incluindo os do meu partido".
Suspeito que tarde
ou cedo vai surgir em Portugal o partido do homem e da mulher comuns. Já tem
nome e muitos adeptos. Chamar-se-á Partido do 25 de Abril. Será, 40 anos depois
da Revolução, a resposta política aos que, aproveitando um momento de
debilidade, destruíram em três anos o que construímos durante 40. O 25 de Abril
é o nome do português e da portuguesa comum cuja dignidade não está à venda no
mercado dos mercenários, onde todos os dias se vende o país. Será um partido de
tipo novo que estará presente na política portuguesa, quer se constitua ou não.
Se se constituir, terá o voto de muitas e muitos; se não se constituir, terá
igualmente o voto de muitas e muitos, na forma de voto em branco. Por uma ou
por outra via, o Partido do 25 de Abril não esperará pelo próximo livro de
Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia, onde ele explicará como o FMI destruiu
o sul da Europa com a conivência da União Europeia.
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