Sílvia
Caneco – jornal i
Artista
recusou suspensão provisória porque não tinha cometido crime. Historiadores,
juízes e procuradores dizem: se não há dolo não há ultraje
Élsio
Menau tinha de fazer um trabalho de final de curso para concluir a licenciatura
em Artes Visuais
pela Universidade do Algarve. Pela segunda vez, lembrou-se de usar a bandeira
nacional: pendurou-a como se a enforcasse e deixou a instalação artística no
meio de um terreno particular em Faro. Alguém passou, achou que era uma ofensa à
pátria e foi fazer queixa à GNR. Dois dias depois, os militares foram ao local
e levaram a obra. Meses depois, já depois de a bandeira portuguesa se ter
tornado a principal protagonista de um 5 de Outubro (por António Costa e Cavaco
Silva a terem hasteado ao contrário durante a cerimónia), o estudante foi
chamado a prestar declarações na Polícia Judiciária. Em 2013, o procurador do
Ministério Público (MP) de Faro que conduziu o inquérito entendeu que Élsio tinha
ultrajado um símbolo nacional e decidiu levá--lo a julgamento. O MP, ao que o i averiguou,
ainda sugeriu suspender provisoriamente o processo, mas Élsio recusou: fazê-lo
era assumir que tinha cometido um crime.
Élsio,
que se defende dizendo estar simplesmente a fazer arte, mostrando um país
"com a corda na garganta", não tem dúvidas de que não faltou ao
respeito ao país. E ninguém, entre procuradores, juízes e historiadores ouvidos
pelo i, vê naquela instalação artística um ultraje. Onde o procurador do
MP de Faro viu indícios de crime, todos os outros vêem apenas uma metáfora.
A
prova neste caso era tão simples de produzir que o julgamento se limitou a uma
audiência: uma segunda-feira foi suficiente para ver as fotos da instalação
artística, ouvir os professores de Élsio - que avaliaram o trabalho em 17
valores - serem suas testemunhas de defesa e, no final, ver o procurador de
julgamento a pedir a absolvição por considerar não ter ficado provada a
intenção de Élsio ultrajar fosse o que fosse. No dia 7 de Julho será lida a
sentença.
"É
evidente que era uma crítica à situação do país. Todo esse processo me parece
um disparate. Qualquer pessoa com o mínimo de inteligência percebe que é uma
metáfora", diz ao i o historiador António Reis, acrescentando
que o ultraje de um símbolo nacional só se verificará em casos extremos, como
"rasgar uma bandeira ou espezinhá-la". Caso contrário, chegaria a ser
discutível se actos como não cantar o hino, ficar sentado a ouvi-lo numa
cerimónia ou ter uma bandeira a desfiar-se na janela desde o Euro 2004 seria
falta de respeito pelos símbolos do país.
O
juiz Alexandre Baptista Coelho reconhece que este tipo de crime não passa todos
os meses pelas secretárias dos tribunais. E reduz tudo a um princípio básico:
"No processo-crime tem de haver intenção de cometer um crime. O Ministério
Público de julgamento terá concluído que essa intenção não existia. O bom gosto
da criação artística pode sempre ser discutível, mas se não há dolo não há
crime."
A
dedução da acusação contra Élsio Menau surpreende ainda mais os pares porque a
lei não pune ultrajes e faltas de respeito a símbolos nacionais por
negligência: ou seja, percebendo-se que era uma instalação artística produzida
para um trabalho de curso, e que a intenção era fazer uma crítica à falta de
soberania do país, seria claro não ter havido intenção de cometer um crime. Da
mesma maneira que o episódio das cerimónias do 5 de Outubro de 2012 acabou
arquivado por se concluir que hastear a bandeira ao contrário tinha sido um
acidente de percurso, não premeditado.
Sobre
o caso que transformou o estudante de Artes Visuais em arguido, um procurador
do MP que pede o anonimato diz ser "um claro caso que não deve ser
punido". "É uma instalação artística, não é nada de mais, não é
defecar em cima da bandeira. Devemos perguntar--nos se não há ali uma causa de
justificação da ilicitude, como acontece na legítima defesa. Neste caso, será o
exercício de outro direito: a liberdade de expressão artística", continua
o magistrado. Faz sentido que um caso desses chegue a julgamento, obrigando o
MP a pedir a absolvição? Acontece todos os dias, explicará o mesmo procurador.
"Já cheguei à sala de audiência e cheguei à conclusão que íamos julgar uma
pessoa por um crime que não existia: ofensa à integridade física simples, na
forma tentada. Podemos discutir se não deveria ser crime, mas não é e quem
deduziu a acusação deveria sabê-lo."
Mal
soube do caso, o advogado Fernando Cabrita, com escritório em Olhão,
ofereceu-se para defender o artista. E já nem seria a primeira vez que iria
fazer a defesa de alguém acusado de um crime de ultraje: há uns bons anos tinha
conseguido a absolvição de um imigrante americano que numa noite de copos tinha
andado a gritar que o Ramalho Eanes e Ronald Reagan eram "uns bandidos".
Nas
alegações, Fernando Cabrita apresentou um rol de casos, de dentro e fora do
país, em que artistas tinham sido perseguidos ou acusados, ora por escreverem
um poema chamado Finis Patriae (como foi o caso de Guerra Junqueiro),
ora por cantarem uma versão rock do hino nacional (como João Grosso), ora por
desenharem uma bandeira nacional em forma de microfone (como foi o caso de João
Abel Manta). O advogado insistiu não haver dúvidas de que o "Portugal
Enforcado" era mais "um exemplo de manifestação de indignação".
"Querendo mostrar que o país estava na forca, e só havendo três símbolos
do país, ou se enforcava o hino - o que não era possível -, ou o Presidente da
República - o que não dava jeito - ou a bandeira, como aconteceu", diz o
advogado.
Foto: Miguel A. Lopes - Lusa
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