domingo, 28 de setembro de 2014

Portugal: NA TERRA DAS AVESTRUZES



Pedro Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião

Estamos no meio da pior das crises políticas: a que não nos permite discutir política. Receio mesmo que a análise do fracasso absoluto da governação seja substituída por uma discussão infindável sobre as qualidades pessoais e o passado de Passos Coelho. E, apesar do triste espetáculo que tem protagonizado, estou capaz de apostar que não há eventual mancha no seu passado que se compare à catástrofe económica, social e política que provocou com a sua governação.

É provável que haja uma faixa da população que se sinta mobilizada para vir defender as estranhas falhas de memória, a manipulação do Ministério Público e da Secretaria-Geral da Assembleia da República e a sua santíssima prodigalidade, em nome duma imagem que criou de Passos Coelho e que, assim, se distraia da realidade. Talvez seja isso que o primeiro-ministro quer: tudo, até a sugestão de graves falhas, menos discutir o estado do País.

Seria uma estratégia estranha e, admito, quase inverosímil, mas se pensarmos o que foi a atuação do primeiro-ministro nestas últimas semanas, corremos o risco de acreditar nela.

Não é que não estejamos demasiado familiarizados com a falta de memória de Passos Coelho, mas precisar de uma semana para se lembrar de que, durante três anos, não lhe foi paga uma quantia, que a esmagadoríssima maioria da população portuguesa não consegue arrecadar numa vida inteira, é, digamos, algo que permite recomendar uma caixa inteira de Memofante.

Um primeiro-ministro que não tem a certeza de ter cometido uma ilegalidade grave, tem não só um problema, lá está, de memória, mas um desconhecimento da lei não muito apropriada a um governante. Um líder do Executivo que recorre ao Ministério Público para ser informado duma possível ilegalidade que ele sabe já não poder ser investigada (claro que há sempre a tal possibilidade de os mais simples conhecimentos legais lhe serem estranhos), ou confunde a instituição com um balcão de informações ou quer manipular a PGR para que lhe ofereça uma espécie de álibi. Prefiro a primeira opção.

Alguém que não se recorda de ter assinado uma declaração de exclusividade, num local onde esteve oito anos, e pede mesmo às pessoas que se dirijam aos serviços da Assembleia da República para que o ajudem a avivar a memória, é capaz de não servir para primeiro-ministro. Não por não ter qualidades para a tarefa, mas por ser muito provável que não encontre todos os dias a porta de entrada da residência oficial.

Uma pessoa que afirma não ter sido remunerado por serviços prestados a uma organização que tinha como saudável objetivo a busca do lucro, que mesmo não tendo cargos executivos ou de representação (segundo Passos Coelho) viajava para vários destinos, executava tarefas, tinha jantares de trabalho, parece ser, sem dúvida, uma pessoa muito generosa. E ninguém pode dizer o contrário, arriscando um processo de intenção que ninguém quer sugerir. Mas o que acho estranho nesta prodigalidade é a opção. Ou seja, o primeiro-ministro, entre prescindir da possibilidade de receber o subsídio de reintegração ou cobrar à organização, preferiu dar uma borla aos privados. Entre poupar dinheiro ao erário público ou ajudar os particulares, preferiu a rapaziada do privado. Que diferença para o homem que tanto luta contra as gorduras do Estado.

Não, não pode haver tantas falhas de memória, tantos equívocos, tantas confusões. Talvez tenha mesmo de se acreditar na tal estratégia estranha, na tese inverosímil, na que diz que Passos Coelho teve estes comportamentos exóticos para que não se fale da governação. O contrário, por incrível que pareça, seria ainda pior, muitíssimo pior.

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