Hélio
Santos* - Afropress
No
final dos anos 1990 concluí um livro que tomou quase dez anos de minha vida.
Basicamente, o livro cuida do “Brasil de carne e osso” – tal qual o nosso país
se desenrola em seu cotidiano, onde a vida, afinal, flui.
Não
há como fazer isso sem tomar em conta a questão étnico-racial, sem a qual os
diagnósticos restarão inadequados e incapazes de nos decifrar efetivamente.
Confesso
que foi um período de imersão em subtemas que permeiam o cotidiano da terra-brasilis.
A metodologia utilizada foi a de selecionar ao longo de praticamente uma década
notícias recortadas de jornais e revistas brasileiros – os mais conhecidos.
Esse material “rendeu” mais de meia Kombi de recortes sobre os mais diferentes
assuntos – todos relevantes para o Brasil real. Foi “paulera” classificar todo
aquele volume de textos que me permitiria ousar pensar uma teoria para o
Brasil: “A trilha do círculo vicioso”, a qual não deve e nem necessita ser
abordada aqui agora.
Uma
das inferências feitas foi sobre o chamado “crime do colarinho branco”. Nunca
pude entender bem essa expressão. A princípio, eu cria que se referisse a um
tipo de crime praticado por pessoas bem-nascidas e que usavam gravatas sobre
camisas impolutamente brancas. Essa perspectiva também denotava tratar-se de
crimes masculinos. Bom, até aí tudo bem. Todavia, ao analisar a forma
recorrente com que o fenômeno vinha à tona, pude depreender outras coisas.
Observei
que tais crimes continham quatro características significativas: (1) sempre
havia muito dinheiro envolvido – não era coisa de “pé-de-chinelo”, portanto;
(2) quem sempre pagava a conta por esses desvios era o setor público, ou seja,
a sociedade; (3) os criminosos eram membros da elite econômica, social e
política e (4) não se punia ninguém por tais falcatruas.
Pescoço
branco
Contudo,
outro aspecto ficou escancarado para mim: a fauna dos praticantes daqueles
crimes era de fato composta por homens. Mais: eram também todos brancos. Ou
seja, pude perceber que não só o colarinho era branco, mas os titulares dos
pescoços também...
É
necessário dizer que terminei o livro citado no ano 2000. Explicando melhor:
das características citadas, a última – a que revela a olímpica impunidade de
sempre –, começa a deixar aos poucos de ser uma realidade.
Dos
diversos casos ocorridos na década dos anos 1990, no mesmo livro selecionei o
que foi apelidado pela mídia de caso “Marka e FonteCindam”. Tratava-se de dois
bancos que tinham dívidas em dólares e que receberam auxílio do Banco Central
sob a alegação de que sem a ajuda estatal ocorreria grave risco de crise
sistêmica, o que alcançaria todo o sistema bancário (o caos, uma espécie de
febre financeira que desorganizaria a vida econômica do país). O fato é que em
janeiro de 1999 o BC vendera dólares abaixo da cotação. Resultado: o Tesouro
Nacional contabilizou uma perda de 1,6 bilhão de reais! Das 14 pessoas acusadas
na época pelo Ministério Público podia-se depreender, pelas fotos publicadas
nos jornais, que todas eram brancas pelos padrões nacionais. Passados quase
dois anos, ninguém fora condenado e alguns tinham sido até promovidos!
Hoje,
15 anos depois, os jornais estampam os rostos das pessoas envolvidas no
escândalo da Petrobrás – e, de novo, veem-se as mesmas figuras de sempre, mas
trazendo uma novidade surpreendente: homens brancos e ricos são presos num país
cuja justiça sempre foi severa com o povaréu de pele mais escura e
escandalosamente leniente com os bem-nascidos. Estão envolvidos nesse episódio
executivos de grandes empresas e políticos.
Brasilzão
É
necessário reconhecer que um país do porte do Brasil – 7ª economia do mundo;
mais de 200 milhões de habitantes e com a área continental de 8.547.403,5 km2 –
não se alavanca para um desenvolvimento sustentável sem lideranças que tenham
verdadeira vocação para a responsabilidade social. Dentre esses agentes estão
os empresários. Sim, empresários – não donos de empresas. Para alguns incautos
renitentes advirto: o Brasil é um país capitalista.
Quando
se constata a união de empresários e políticos com o específico fim de sonegar
e/ou desviar recursos que pertencem à sociedade é que se pode aquilatar como
nosso país é pobre. Somos miseravelmente carentes de uma elite da qual todo
país depende para crescer com sustentabilidade. Sem políticos e empresários
eficazes torna-se impossível levar o Brasilzão a um patamar inclusivo – país
lesado por infindas incúrias, mas detentor de um potencial único que pode ser
capaz de nos regenerar das tragédias mais agudas, como foram os três séculos e
meio de escravismo.
Essa
ausência de uma elite plugada no país de carne e osso tem a ver com as
idiossincrasias históricas do Brasil profundo - imbatível em desigualdades que
se perpetuam ao longo de meio milênio.
Faltam-nos
elites! Para quem ainda não sabia, ficou claro que somos muito mais pobres do
que se imaginava! Na base da pirâmide temos uma pobreza construída com zelo
ibérico e no topo dela temos pobreza moral. Estes dois lados no Brasil têm cor.
Ensanduichada por esses dois vetores têm-se classes médias aturdidas e órfãs de
lideranças que possam nortear caminhos adequados. Nota-se hoje que nesse
recheio já há alguma diversidade étnico-racial.
Sustentabilidade
Moral
Como
pesquisador tenho sido parceiro do Instituto Ethos – organização da sociedade
civil com foco na responsabilidade social corporativa, cujos fundadores são
abnegados defensores do Desenvolvimento Sustentável, que tem como princípio o triple
bottom line. Trata-se do tripé que asseguraria o verdadeiro
desenvolvimento com base na sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Venho propondo a algum tempo um quarto tipo de suporte: o da sustentabilidade
moral. Não tem havido muita serventia em importarmos conceitos, válidos para a
Holanda, Dinamarca ou Canadá, que são países com histórico e cultura bem
diferentes dos do Brasil – último país a abolir o escravismo.
Tais
ideias ao sul do equador são pervertidas em benefício do statu quo, o
que na terra-brasilis significa rejeitar a possibilidade de uma cultura
inclusiva. Torna-se, portanto, necessário adaptar aqueles conceitos importados,
mas que não “batem” com a forma de o Brasil de carne e osso funcionar.
Participei como colaborador em pesquisas desenvolvidas pelo próprio Instituto
Ethos em que se observa, por exemplo, o baixo aproveitamento do talento
feminino e a ínfima participação de negras e negros no mercado de trabalho
formado pelas maiores organizações privadas do país. Dos níveis
intermediários para cima, esses segmentos vão escasseando dramaticamente.
Considerando que o grupo negro (pretos + pardos) detém cerca de 52% da
população, tem-se o retrato crítico de um país que acredita ser possível
desperdiçar talentos impunemente. Não é possível! Quem vem se especializando
nas obviedades nacionais sabe que não é.
A
prisão de grandes empresários é coisa pela qual ninguém deve rejubilar-se. A
prisão perpétua que necessita ocorrer é a que enclausura o tipo de cultura de
desenvolvimento que se expandiu por aqui. Nesse modelo pervertido vale rapinar
e excluir, não importando muito a “massa” que vai continuar fora e vai perder
sempre, destituída ainda de algo sagrado que se rapinou também: a esperança de
prosperar pelo trabalho honesto.
Ante
um patrimonialismo anacrônico requer-se igualdade de oportunidades, alicerce
único da sustentabilidade moral sem o que nosso País continuará a mirar para um
futuro incerto e duvidoso.
*É doutor em Administração e Mestre em Finanças pela Universidade de São Paulo
*É doutor em Administração e Mestre em Finanças pela Universidade de São Paulo
Sem comentários:
Enviar um comentário