quinta-feira, 20 de novembro de 2014

ÓLEOS E LUBRIFICANTES




A corrupção tem que ser denunciada como um instrumento nuclear da acumulação capitalista, da extorção sem peias feita ao mundo do trabalho.

Mário Tomé - Esquerda

“A corrupção é o lubrificante da democracia”, dizia Espinoza, o deus ex-machina da cooperação da Máfia com o Estado, ao esforçado Corrado Catani, o polícia que não desistia de desmantelar essa poderosa máquina de uso da corrupção estruturante do sistema capitalista, no seu grau menos sofisticado e mais directo mas não menos eficaz, a Máfia italiana.

Corrado foi assassinado a mando do dito Espinoza que antes lhe mostrara as fichas que detinha, correspondentes às altas figuras do Estado, da Igreja e do Exército.

Estávamos a ver La Piovra (o Polvo) essa série italiana que marcou o panorama televisivo entre 1984 e 2001.

A Máfia – e ninguém se esquece das três partes de “O Padrinho” de Francis Ford Copolla – tem no centro os valores familiares – respeito,fidelidade,hierarquia moralmente sustentada, o poder absoluto do pater familia - que transpôs para a sua própria organização criminosa. E tem, ainda, um código de conduta, um código moral irrepreensível cuja violação era paga com a morte.

As sociedades democráticas, quase que já aboliram na sua organização a pena de morte legal, mas foram mais lestas a abolir a moral nas relações sociais determinadas pelo mercado (onde ela, aliás, nunca existiu realmente).

A nostalgia mítica dos tempos em que havia moral esconde a essência da sociedade burguesa, capitalista portanto, desde os primórdios: o domínio e hegemonia da burguesia,exercem-se através do cinismo, da hipocrisia, da falsidade, da traição, do segredo, da mentira, da corrupção: as apólices de seguro da propriedade.

Os “pais fundadores” saídos da primeira revolução burguesa em nome do povo, a revolução americana, sabiam que a corrupção estava no âmago da sociedade nova que nascia. A lei que aboliu a escravatura nos EUA, um dos passos fundamentais para o progresso da humanidade, foi conseguida por Abraham Lincoln corrompendo activamente dezenas de congressistas para conseguir os votos necessários.

O combate à corrupção - legiferação, justiça, polícias, serviços de informações, transparência, monitorização, regulação (oh! a regulação!) etc. – é, também ele, um instrumento ao serviço da corrupção sistémica do capitalismo, uma espécie do velho “agarra que é ladrão”.

A corrupção, na época do imperialismo e do neoliberalismo já não é mais o lubrificante da democracia, como justamente dizia o nosso Espinoza duas décadas atrás.

É agora a democracia, adulterada completamente pela subordinação ao funcionamento do mercado financeiro, que passou a ser o lubrificante da corrupção, factor estruturante da actual sociedade burguesa.

Sem o lubrificante da corrupção o sistema democrático burguês emperra; sem democracia, a corrupção apareceria com a sua verdadeira face de facilitadora por excelência do saque organizado a favor dos “donos disto tudo” e não apenas como uma lamentável falha do sistema.

Assim, a esquerda tem como missão nuclear, na sua luta dentro e fora das instituições, desmascarar a conversa mole da luta contra a corrupção.

Ao mesmo tempo que exige, até ao limite, que as instituições formalmente democráticas que subordinam a vida organizada das nações, combatam a corrupção pelo menos nos termos da sua retórica demagógica, tem que, obrigatória e sistematicamente, fazer a denúncia e a demonstração cabal e oportuna do carácter essencialmente corrupto e corruptor do sistema.

A corrupção tem que ser denunciada como um instrumento nuclear da acumulação capitalista, da extorção sem peias feita ao mundo do trabalho.

A luta contra a corrupção insere-se radicalmente na luta anti-capitalista. Fora desta, não passa de encanar a perna à rã ao mesmo tempo que contribui para naturalizar a própria corrupção enquanto mero comportamento desviante.

Os tempos estão a mudar lentamente, os movimentos sociais ganham fôlego, apresentando-se como único contra-poder confiável e os partidos que querem ter papel são cada vez mais solicitados a ser parte desse movimento de características globalizantes que ameaça a ordem instituída e construída ao abrigo da corrupção sistémica.

O próprio papa Francisco denuncia com coragem, e à margem sua própria congregação, o capitalismo como criminoso e assassino, como provocador da imensa desgraça que flagela povos e trabalhadores, que provoca a marginalização da imensidão de pobres e excluídos saídos das fileiras do trabalho, o negócio do armamento, mais ainda que a disputa geoestratégica,como fomentador das guerras contra os povos. À corrupção classifica, como uma “cultura de subtracção” denunciando que a corrupção dos ricos – os “donos disto tudo” - acaba sendo paga pelos pobres.

Como ele disse na recente reunião que teve com representantes dos movimentos sociais, entre os quais o exemplar Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do Brasil:

“Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos. É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo”.

E numa crítica subtil não só à sua igreja como aos adeptos da misericórdia e da regulação: “Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos”. Um apelo, pois, à luta concreta e à ousadia da recusa das soluções “social-democratas” e “democratas-cristãs”.

A esquerda quer contribuir para mudar este sistema que “não se aguenta mais”e “levar a dignidade humana para o centro” para construir as “estruturas sociais alternativas de que precisamos”.

Não pode, na clareza e veemência da denúncia e na coragem da acção, ficar atrás deste simpático e inesperado aliado.

*Mário Tomé, coronel na reforma. Militar de Abril

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