A
corrupção tem que ser denunciada como um instrumento nuclear da acumulação
capitalista, da extorção sem peias feita ao mundo do trabalho.
Mário Tomé -
Esquerda
“A
corrupção é o lubrificante da democracia”, dizia Espinoza, o deus
ex-machina da cooperação da Máfia com o Estado, ao esforçado Corrado
Catani, o polícia que não desistia de desmantelar essa poderosa máquina de uso
da corrupção estruturante do sistema capitalista, no seu grau menos sofisticado
e mais directo mas não menos eficaz, a Máfia italiana.
Corrado
foi assassinado a mando do dito Espinoza que antes lhe mostrara as fichas que
detinha, correspondentes às altas figuras do Estado, da Igreja e do Exército.
Estávamos
a ver La Piovra
(o Polvo) essa série italiana que marcou o panorama televisivo entre 1984 e
2001.
A
Máfia – e ninguém se esquece das três partes de “O Padrinho” de Francis Ford
Copolla – tem no centro os valores familiares – respeito,fidelidade,hierarquia
moralmente sustentada, o poder absoluto do pater familia - que
transpôs para a sua própria organização criminosa. E tem, ainda, um código de
conduta, um código moral irrepreensível cuja violação era paga com a morte.
As
sociedades democráticas, quase que já aboliram na sua organização a pena de
morte legal, mas foram mais lestas a abolir a moral nas relações sociais
determinadas pelo mercado (onde ela, aliás, nunca existiu realmente).
A
nostalgia mítica dos tempos em que havia moral esconde a essência da sociedade
burguesa, capitalista portanto, desde os primórdios: o domínio e hegemonia da
burguesia,exercem-se através do cinismo, da hipocrisia, da falsidade, da
traição, do segredo, da mentira, da corrupção: as apólices de seguro da
propriedade.
Os
“pais fundadores” saídos da primeira revolução burguesa em nome do povo, a
revolução americana, sabiam que a corrupção estava no âmago da sociedade nova
que nascia. A lei que aboliu a escravatura nos EUA, um dos passos fundamentais
para o progresso da humanidade, foi conseguida por Abraham Lincoln corrompendo
activamente dezenas de congressistas para conseguir os votos necessários.
O
combate à corrupção - legiferação, justiça, polícias, serviços de informações,
transparência, monitorização, regulação (oh! a regulação!) etc. – é, também
ele, um instrumento ao serviço da corrupção sistémica do capitalismo, uma
espécie do velho “agarra que é ladrão”.
A
corrupção, na época do imperialismo e do neoliberalismo já não é mais o
lubrificante da democracia, como justamente dizia o nosso Espinoza duas décadas
atrás.
É
agora a democracia, adulterada completamente pela subordinação ao funcionamento
do mercado financeiro, que passou a ser o lubrificante da corrupção, factor
estruturante da actual sociedade burguesa.
Sem
o lubrificante da corrupção o sistema democrático burguês emperra; sem
democracia, a corrupção apareceria com a sua verdadeira face de facilitadora
por excelência do saque organizado a favor dos “donos disto tudo” e não apenas
como uma lamentável falha do sistema.
Assim,
a esquerda tem como missão nuclear, na sua luta dentro e fora das instituições,
desmascarar a conversa mole da luta contra a corrupção.
Ao
mesmo tempo que exige, até ao limite, que as instituições formalmente
democráticas que subordinam a vida organizada das nações, combatam a corrupção
pelo menos nos termos da sua retórica demagógica, tem que, obrigatória e
sistematicamente, fazer a denúncia e a demonstração cabal e oportuna do
carácter essencialmente corrupto e corruptor do sistema.
A
corrupção tem que ser denunciada como um instrumento nuclear da acumulação
capitalista, da extorção sem peias feita ao mundo do trabalho.
A
luta contra a corrupção insere-se radicalmente na luta anti-capitalista. Fora
desta, não passa de encanar a perna à rã ao mesmo tempo que contribui para
naturalizar a própria corrupção enquanto mero comportamento desviante.
Os
tempos estão a mudar lentamente, os movimentos sociais ganham fôlego,
apresentando-se como único contra-poder confiável e os partidos que querem ter
papel são cada vez mais solicitados a ser parte desse movimento de
características globalizantes que ameaça a ordem instituída e construída ao
abrigo da corrupção sistémica.
O
próprio papa Francisco denuncia com coragem, e à margem sua própria
congregação, o capitalismo como criminoso e assassino, como provocador da
imensa desgraça que flagela povos e trabalhadores, que provoca a marginalização
da imensidão de pobres e excluídos saídos das fileiras do trabalho, o negócio
do armamento, mais ainda que a disputa geoestratégica,como fomentador das
guerras contra os povos. À corrupção classifica, como uma “cultura de
subtracção” denunciando que a corrupção dos ricos – os “donos disto tudo” -
acaba sendo paga pelos pobres.
Como
ele disse na recente reunião que teve com representantes dos movimentos
sociais, entre os quais o exemplar Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, do
Brasil:
“Alguns
de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo,
temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar,
se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos. É preciso
fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem
fanatismo”.
E
numa crítica subtil não só à sua igreja como aos adeptos da misericórdia e da
regulação: “Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo
estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em
seres domesticados e inofensivos”. Um apelo, pois, à luta concreta e à ousadia
da recusa das soluções “social-democratas” e “democratas-cristãs”.
A
esquerda quer contribuir para mudar este sistema que “não se aguenta mais”e
“levar a dignidade humana para o centro” para construir as “estruturas sociais
alternativas de que precisamos”.
Não
pode, na clareza e veemência da denúncia e na coragem da acção, ficar atrás
deste simpático e inesperado aliado.
*Mário Tomé, coronel
na reforma. Militar de Abril
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