António
Santos – Diário Liberdade
A
batalha de Ferguson é também uma batalha pelo reconhecimento dos negros como
seres humanos com direitos. É uma batalha pelo desmantelamento da secular canga
das instituições que existem para manter os negros «no seu lugar». É uma
batalha contra a pobreza.
Quando,
em 1950, os EUA decidiram invadir a Coreia, o presidente Truman não lhe chamou
uma guerra, que exige a aprovação do Congresso, mas sim uma «acção policial».
Cem dias depois do homicídio de Mike Brown, um jovem negro, pobre e desarmado,
os EUA continuavam a aguardar, em calma tensa, pela decisão dos tribunais de
acusar ou ilibar o assassino confesso, o polícia branco Darren Wilson. Durante
cem dias um jurado investigou se um polícia deve ser julgado por matar, com
doze tiros, um jovem com as mãos no ar, à frente de dezenas de testemunhas. Na
antecipação vesperal do veredicto, o governador declarou o estado de
emergência, foram chamados milhares de militares da Guarda Nacional e as ruas
foram ocupadas por tanques e polícias armados com material de guerra. Como em
1950, Obama não lhe chama uma guerra. E nem por isso deixa de o ser.
Finalmente,
nesta terça-feira, foi conhecida a decisão de não levar Darren Wilson à barra
do tribunal, uma decisão já esperada e que vem reafirmar o velho axioma do
sistema judicial americano: nos EUA assassinar um negro não é crime. Não são
precisos cem dias para compreender que homicídio é crime, mas são precisos cem
dias para arranjar uma forma de nos convencer do contrário.
Crónica
de uma injustiça anunciada
Conhecida
a decisão na noite de terça-feira, dezenas de milhares de pessoas saíram às
ruas de 38 estados, desafiando corajosamente as provocações da polícia
militarizada com mais de 150 manifestações que, de costa a costa, enfrentaram a
mais brutal repressão. Em Ferguson, por exemplo, a polícia lançou litros de
gás-pimenta sobre zonas residenciais e durante toda a noite carregou sobre os
manifestantes. Contudo, o principal ataque contra as comunidades
afro-americanas chega agora na forma de uma campanha mediática com proporções
de guerra psicológica. Tal como acontece sempre que um jovem afro-americano é
assassinado, a comunicação social da classe dominante tem-se dedicado a
desumanizar o morto, escarafunchando a sua biografia e procurando justificações
racistas para o homicídio. Por outro lado, a abjecta campanha que caracteriza
os manifestantes como «animais selvagens» e identifica, no seu todo, a cultura
afro-americana como criminosa e preguiçosa, mostrou o alcance da fractura
racial nos EUA: à semelhança do teste de Roschach, em que diferentes pessoas
vêem imagens distintas num borrão a preto e branco, também a percepção da
população estado-unidense sobre Ferguson permanece profundamente dividida.
Afectadas por uma miopia política sem paralelo no mundo, segmentos
significativos da América branca mostram-se incapazes de compreender o
sofrimento dos negros.
Alicerçada
no genocídio e na escravatura, a História dos EUA é indissociável do racismo.
Para compreender a formidável indignação com que se levanta agora a luta dos
afro-americanos, há que entender as suas feridas profundas, que nunca puderam
sarar. Feridas causadas por um sistema económico que depende estruturalmente da
opressão institucional dos negros.
Ainda
há menos de cem anos e a poucos quilómetros de Ferguson, St. Louis assistia a
um pogrom contra os operários afro-americanos. Num só dia, 150 pessoas foram
linchadas, incluindo 39 crianças cujos crânios foram esmagados com pedras. Mais
de metade destes crimes teve a assinatura da polícia. Ontem como hoje, as
forças policiais estado-unidenses são o mais tenebroso e violento reduto do
racismo e da segregação, mantendo em carne viva o legado dos linchamentos,
assassinatos e perseguições. E ontem como hoje, os afro-americanos não esquecem
nem baixam os braços.
Com
as mãos no ar e os punhos cerrados
A
mais conhecida palavra de ordem que em Agosto emergiu de Ferguson foi «Mãos no
ar! Não disparem». Porém, à medida que o movimento amadureceu, as manifestações
foram ganhando novas palavras de ordem e as mãos abertas no ar foram-se
fechando. Nas manifestações de terça-feira, por exemplo, ouviu-se gritos pela
subida do salário mínimo e pela liberdade sindical. Numa evidente tomada de
consciência de classe, Ferguson soube distanciar-se dos tradicionais líderes afro-americanos
do Partido Democrata como Jesse Jackson e Al Sharpton e decidiu construir um
movimento independente, cujas principais reivindicações são sociais e
económicas.
A
batalha de Ferguson já não é só pela acusação de Darren Wilson. É uma batalha pelo
reconhecimento dos negros como seres humanos com direitos. É uma batalha pelo
desmantelamento da secular canga das instituições que existem para manter os
negros «no seu lugar». É uma batalha contra a pobreza, que empurra milhões de
jovens negros para as prisões. É uma batalha pela habitação, pela saúde e pela
educação gratuitas, de qualidade e para todos. É uma batalha contra o racismo.
É uma batalha de todos.
[Artigo
tirado do sitio web portugués ‘Avante’, núm. 2.139,
do 27 de novembro de 2014]
Leia
mais em Diário
Liberdade
Sem comentários:
Enviar um comentário