Montreal,
Canadá (Prensa Latina) É difícil não sentir que o mundo, a humanidade e nossa
mãe terra estão sendo empurradas à catástrofe pelo império neoliberal, ou seja
pelos Estados Unidos (EUA) e seus aliados da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (OTAN).
Isto
é tão válido ao falarmos da natureza, da acelerada extinção de espécies e do
reaquecimento global, assim como das sociedades, ou melhor dito do que delas
resta em tantos Estados
- países que se deixaram ou estão sendo empurrados a se despojar de toda soberania
nacional e popular.
Este
caos atual é o produto das políticas de um imperialismo que desde a derrubada
da União Soviética trata de manter uma ordem unipolar para instaurar
mundialmente e sem alternativa de mudança o neoliberalismo, de fazer realidade
o "não há outra alternativa" de Margaret Thatcher.
Mas,
como ficou demonstrado quando os EUA foram forçados a mudar sua política de
agressão na Síria, a partir de setembro de 2013, a unipolaridadee já
não é possível não apenas pelo papel ativo que jogam duas grandes potências,
como o são Rússia e China, senão por existir uma maioria de países no mundo que
apoiam o retorno a um multilateralismo e se opõem à perda da soberania nacional
e popular que lhes permita adotar suas próprias políticas socioeconômicas e se
integrar internacional ou regionalmente de maneira compatível com seus
legítimos interesses nacionais.
A
unipolaridade já estava comprometida pela constatação no Oriente Médio, África
e Ásia de que os EUA e seus aliados provocam guerras que não ganham -
Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria -, mas que sempre deixam caos, mortes,
refugiados, miséria e destruição econômica e social.
Em
2011 os dois principais aliados do império no Oriente Médio, Israel e Arábia
Saudita, criticaram abertamente Washington por não ter lançado uma guerra
contra o Irã e ter permitido a derrocada do presidente Mubarak no Egito,
fazendo chegar ao presidente Barack Obama a mensagem de que "não se
abandona os aliados".
Todo
mundo, e em primeiro lugar os aliados de Washington, sabem que as guerras que
os EUA e seus aliados lançam não se ganham, que destroem países, economias e
sociedades, e deixam o caos.
Desde
o Afeganistão até a Síria, passando pelo Iraque e Líbia - sem esquecer do
Paquistão, Sudão e outros países africanos -, só deixaram destruição, lutas
sanguinárias entre comunidades religiosas e grupos étnicos, e centenas de
milhares de mortos, feridos e refugiados, e uma grande miséria. Os EUA não têm
nada de positivo para mostrar.
Há
quase duas décadas o economista ítalo-estadunidense David Calleo escreveu sobre
as fases de decadência final dos impérios da Holanda e da Inglaterra,
qualificando-as como uma "hegemonia exploradora", nas quais o império
não tem nada a oferecer de positivo (desenvolvimento socioeconômico ou segurança
militar, por exemplo) aos países que domina e compõem o sistema, inclusive para
a economia e sociedade do império, e então se dedica a expremê-los a fundo, a
viver da fonte de renda que por todos os meios pode extrair desses países. O
império estadunidense se encontra nessa fase.
Um
exemplo é suficiente: em uma conversa privada o ministro de Relações Exteriores
da Polônia, Radoslaw Sikorski, deixou claro que a aliança de seu país com os
EUA e a OTAN não os beneficia e que, ao contrário, provoca perigosos focos de
tensões com os países vizinhos.
O
mesmo deve estar pensando qualquer pessoa honesta que ainda esteja no governo
criado pelo golpe de Estado na Ucrânia, último país que os EUA e seus aliados
da OTAN levaram à beira da guerra civil para provocar foco de constante
confronto com a Rússia.
Ao
mesmo tempo, um sinal de que o império já não pode controlar todo o mundo
durante o tempo todo, é de que na América Latina e no Caribe prossegue a
criação dos mecanismos de integração regional e subregional, nos quais os EUA
não figuram nem podem controlar.
Por
sua vez os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) continuam
avançando com seus projetos de criação de um banco de desenvolvimento e
instrumentos monetários e financeiros fora do alcance dos EUA e do dólar,
enquanto assistimos ao reforço dos laços econômicos, comerciais e monetários
entre a Rússia e a China, entre outros processos regionais em curso na Ásia e
Eurásia.
Nada
disto constitui em si uma alternativa anticapitalista, senão que quase a
totalidade dos países funcionam dentro de um sistema capitalista, ainda que
tenham importantes setores estatais na economia e possam estar priorizando
formas de propriedade social como substitutas à propriedade privada em ramos da
economia. Mas, detalhe chave, em praticamente todos os países a intervenção
estatal na economia é um fato.
Igualmente,
em todos esses processos o regionalismo inclui a participação e intervenção dos
Estados, de suas instituições e empresas, assim como níveis de planejamento
setorial nas áreas industriais, energéticas, comerciais e de serviços, e
sistemas financeiros e monetários que se prometem ou vislumbram que estarão
fora do controle do império e de seus aliados.
Uma
forma de regionalismo deste tipo como alternativa ao "capitalismo
universal", o que hoje chamamos neoliberalismo, foi proposto pelo
intelectual húngaro Karl Polanyi em 1945.
Mas
ainda não sendo uma alternativa socialista ou anticapitalista, é claro que
estes processos regionais e multilaterais constituem uma formidável barreira
aos planos do império, uma barreira que o imperialismo está tratando de
derrubar com todos os instrumentos ao seu alcance, como a ofensiva para
concluir rapidamente e no mais completo segredo os Acordos de "última
geração" - o Acordo Transpacífico de Associação econômica, a Associação
Transatlântica sobre Comércio e Investimentos e o Acordo sobre o comércio em
serviços -, ou tratando de entorpecer os acordos regionais através dos
políticos, burocratas, profissionais e empresários que estão a serviço do
império.
Os
mencionados Acordos têm por objetivo a eliminação da soberania nacional e a
fixação dos Estados signatários de respeitar os termos desses tratados
negociados em segredo, que respeitam apenas uma lei, a dos EUA, e incluem
mecanismos através dos quais os Estados que não respeitarem os termos podem ser
levados aos tribunais de arbitragem pelos monopólios. Esses Estados passam a
ser fiadores dos investimentos dos monopólios estrangeiros para se apropriar
dos setores econômicos que lhes interessam, incluindo os que deixarão os
Estados ao se privatizar os serviços públicos.
Mas
esses Acordos não estão simplesmente dados, porque cresce a rejeição nas
populações que não querem abandonar seus legítimos sentimentos e interesses
nacionais, e nos interesses capitalistas locais que sabem que serão esmagados
pelos monopólios estrangeiros.
E
enquanto o regionalismo avança, na Casa Branca e no Congresso de Washington não
resta outra alternativa que se aferrar a continuar achando que o império é
invulnerável e que pode continuar atuando, ele e seus aliados estratégicos, com
a impunidade que a (relativamente breve) ordem unipolar lhes permitiu. É neste
contexto que tem sua dimensão o discurso do presidente russo Vladimir Putin aos
embaixadores da Rússia, em 1 de julho, em que recorda que os EUA estão
aplicando ao seu país a mesma política de "contenção" que aplicaram
contra a União Soviética durante a Guerra Fria, e que esperava que o
pragmatismo prevaleceria, que os países ocidentais se despojariam de ambições,
de tratar de "estabelecer quartéis mundiais para organizar tudo conforme
os interesses, e impor regras uniformes de comportamento e de vida da
sociedade".
Putin
disse que os diplomatas russos sabem o quão dinâmicos e imprevisíveis os
acontecimentos internacionais podem às vezes ser. Parecem ter acontecido juntos
de uma só vez e por desgraça não são todos de caráter positivo.
O
potencial de conflito está crescendo no mundo, as velhas contradições se
agudizan e outras novas estão sendo provocadas. Continuamente nos encontramos
com este tipo de situações, com frequência de forma inesperada, e observamos
com pesar que o direito internacional não está funcionando, que as leis
internacionais não funcionam, que as elementares normas de decência são
descartadas e que triunfa o princípio de tudo-é-permitido...
É
tempo de que reconheçamos o direito dos demais a serem diferentes, o direito de
cada país a construir sua vida por si próprio, não pelas avassaladoras
instruções de alguns (...) o desenvolvimento global não pode ser unificado, mas
podemos e devemos procurar um terreno comum, ver parceiros nos demais, não
rivais, e estabelecer cooperação entre os Estados, suas associações e as
estruturas integradas.
E
ao se referir aos conflitos que assolam várias regiões do mundo, Putin destacou
que o mapa do mundo tem mais e mais regiões onde as situações estão
cronicamente conturbadas, sofrendo de um "déficit de segurança".
Horas
antes, no Encontro Internacional Anti-imperialista convocado pela Federação
Sindical Mundial (FSM) e realizado em Cochabamba, Bolívia, o presidente
boliviano, Evo Morales, apontou que "é importante identificar" os
atuais instrumentos de dominação do capitalismo, do imperialismo, porque
"pelo menos na América Latina já não se encontram golpes de Estado, já não
há tanto as ditaduras militares como antes", senão que "povos que
defendem as democracias, povos que com muita clareza propõem programas e
projetos, projetos políticos de libertação".
E
neste contexto, segundo o presidente boliviano, há que se perguntar o que faz o
império: "provoca conflitos em cada país, financia confrontos de um povo,
de um país e depois com o pretexto de defesa dos direitos humanos, da criança,
da mulher, do idoso, intervêm com o Conselho de Segurança; que esse Conselho de
Segurança? Para mim esse chamado Conselho de Segurança da ONU continua sendo um
conselho de insegurança, um conselho de invasão aos povos do mundo".
Para
enfrentar esta agressão imperialista, Morales pediu aos delegados da FSM que
elaborem "uma nova tese política para libertar os povos do mundo",
que ultrapasse "as reivindicações setoriais para afundar a crise no
capitalismo e por um fim a ele, assim como às oligarquias e hierarquias".
Resumindo,
para um observador que não tenha perdido a memória histórica, o que Putin disse
não é mais do que uma explicação aos diplomatas da Rússia da conclusão à qual o
povo russo, e ao menos uma parte de seus dirigentes, chegaram após terem
sofrido a experiência da Perestroika e da aplicação brutal das políticas
neoliberais, e de viver a atual experiência de como o imperialismo
estadunidense age quando um povo quer buscar sua própria via, ainda que dentro
do capitalismo. Sem menosprezar que tudo isso deva ter ajudado a reviver o que
o imperialismo tentou enterrar: os ensinamentos de Lenin sobre o imperialismo.
Não
é tão fácil apagar a memória histórica dos povos, e enquanto pensava li o
artigo "Una mirada al pasado" de Ricardo Alarcón de Quesada,
ex-presidente da Assembleia Nacional de Cuba, que conclui com a seguinte frase:
Ao voltar a olhar para aqueles anos sonhadores vem à mente a advertência de
William Faulkner: "O passado nunca morre. Nem sequer é passado"
(publicado na revista chilena Punto Final, edição nro. 807 de 27 de junho de
2014).
Poucos
dias antes da reunião da FSM, o presidente Evo Morales foi anfitrião da reunião
dos 77+China, e sem dúvida ali registrou muitos sentimentos sobre o brutal agir
do imperialismo e a vontade de muitos governos de poder defender seus legítimos
interesses nacionais, algo que no império neoliberal está proibido.
Novamente,
quando os povos vivem sob o punho imperial e recuperam a memória histórica, é
lógico que a necessidade de uma estratégia anti-imperialista retorne.
Em
uma recente análise intitulada "America's Real Foreign Policy - A
Corporate Protection Racket", o intelectual estadunidense Noam Chomsky
descreve o verdadeiro objetivo histórico da política exterior dos EUA: proteger
os interesses do setor das grandes empresas com um "nacionalismo econômico
(um protecionismo que) depende em grande parte da intervenção estatal em
massa", e por isso em regra geral se opôs por todos os meios a que os
demais países tenham políticas de "nacionalismo econômico".
Isto,
fundamenta Chomsky com referências documentárias, é válido para toda a análise
da política estadunidense para a América latina e o Caribe, e é a profundidade
do conjunto da política exterior estadunidense em todo o período posterior à
Segunda Guerra Mundial, quando o sistema mundial que ia ser dominado pelos EUA
foi ameaçado pelo o que os documentos internos chamavam de "regimes
radicais e nacionalistas", que respondem às pressões populares para um
desenvolvimento independente.
O
que Chomsky documenta se enquadra com o que em 1945 Karl Polanyi antecipava,
que os EUA "têm sido o lar do capitalismo liberal do século XIX e é o
suficientemente poderoso para prosseguir sozinho a utópica política de
restaurar o liberalismo".
E,
nesse sentido e com todas as limitações que implica, o regionalismo é nesse
momento a principal frente anti-imperialista, e outra terá que ser construída
pelos povos, por suas organizações políticas, sindicais e sociais.