O
período do programa de ajustamento da troika e do Governo é marcado por uma
transferência de grandes proporções dos rendimentos do trabalho para os do
capital, indicam dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) publicados
esta semana. As famílias portuguesas estão mais capitalistas, por assim dizer.
De
acordo com cálculos do Dinheiro Vivo à forma como evoluiu a distribuição do
rendimento das famílias entre o segundo trimestre de 2011 e o terceiro
trimestre deste ano (valores trimestrais, médias móveis de quatro meses),
verifica-se uma quebra brutal do rendimento dos salários (menos 5,8 mil milhões
de euros ou uma redução de 6,9%). Foi a única parcela do rendimento disponível
bruto que caiu. O emagrecimento das remunerações pagas deve-se à compressão e
aos cortes diretos nos salários e ao efeito da subida do desemprego.
Ao
mesmo tempo, as duas componentes relativas à remuneração do capital registaram
aumentos assinaláveis durante os 14 trimestres do programa: os rendimentos de
propriedade -- são, grosso modo, rendas de imobiliário, juros auferidos, ganhos
em dividendos -- engordaram 3,5 mil milhões de euros (mais de 36%) e
o excedente de exploração (que reflete a remuneração do factor capital em
sentido estrito, o valor acrescentado) somou mais 860 milhões de euros (mais
2,8%).
E
até foi batido um recorde. Os rendimentos de propriedade alcançaram o
nível mais elevado da série longa do INE, que remonta a 1999: 13,2 mil milhões
ou 10,6% do rendimento disponível no terceiro trimestre deste ano.
Ou
seja, mesmo com crise, recessão e um programa de ajustamento muito duro que
deprimiu a economia e a sobrecarregou as famílias com enormes aumentos de
impostos, a parte relativa ao capital resistiu mais que bem: aumentou 4,4 mil
milhões de euros entre o momento em que a troika entrou no país e o terceiro
trimestre deste ano.
Os impostos sobre
rendimento e património, que abatem ao rendimento disponível das famílias,
foram, como já se esperava, os campeões de crescimento nestes três anos e meio
de austeridade: no terceiro trimestre, o aumento registado foi superior a 46%.
Mais 4,6 mil milhões de euros cobrados pelo Estado, em termos absolutos.
Mudança
de estrutura
Visto
de outra perspetiva, o que está a acontecer é uma alteração estruturar da
distribuição de rendimentos em Portugal.
Os
rendimentos do trabalho perderam importância, baixando de 65,5% do rendimento
disponível bruto das famílias para 62,4%. Em sentido contrário, os rendimentos
do capital reforçaram de 32,1% para 36,4% do total.
Há seis meses, o Dinheiro Vivo fez esta mesma análise, mas em
termos anuais e para o período que marcou a crise financeira e económica (2007 a 2013).
Os
resultados são similares. Na altura, concluiu-se que entre o início da crise de
2007/2008 e o final de 2013 assistiu-se, em Portugal, a uma transferência de
riqueza do factor trabalho para o capital de grandes proporções, indicaram na
altura vários economistas.
Pedro
Ramos, professor catedrático da Universidade de Coimbra e antigo director do departamento
de contas nacionais do INE, fez os cálculos e apurou que o peso do trabalho por
conta de outrem e por conta própria desceu de 53,2% do produto interno bruto em
2007 para 52,2% em 2013, por exemplo.
Para
este especialista, a crise, e em especial o programa de ajustamento da troika,
permitiu extrair valor ao factor trabalho ao mesmo tempo que enriqueceu o
capital. É um fenómeno "estranho", um "fenómeno novo",
referiu. "Sabemos que nas crises económicas as empresas têm prejuízos,
as crises atingem os acionistas. Existe portanto perda de valor ao nível dos
excedentes de exploração", observou o académico. Não foi o que aconteceu.
A
análise aos dados trimestrais dá uma noção ainda mais atualizada e
dramática do processo em curso.
A
parte positiva desta alteração estrutural terá mais a ver com o reforço da
capacidade de poupança que, expectavelmente, pode ajudar o investimento. Se
houver mais capacidade capitalista, significa que a prazo pode haver mais novo
investimento e criação de emprego.
Não
é o que está acontecer do lado das famílias. "A taxa de poupança das
famílias diminuiu, fixando-se em 9,7% (10,3% no ano terminado no trimestre
anterior), devido sobretudo ao aumento da despesa de consumo final (variação de
0,7%)", explicou o INE.
Luís
Reis Ribeiro – Dinheiro Vivo – Foto: Mário Cruz, Lusa
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