Mariana
Mortágua – Expresso, opinião
A
Grécia, diz-nos a pressão do Banco Central Europeu mas também a alegria
contagiante da direita a cada possível contrariedade para o governo grego, tem
que ser o exemplo. O problema não é tanto a dívida - que as reestruturações são
como os chapéus e há para todos os gostos - e muito menos o radicalismo do
Syriza, que já deu profusos sinais de que é a parte dialogante e interessada na
resolução de um problema que é grego, mas também europeu. O que é preciso
evitar a todo o custo é a ideia, perigosíssima para quem mexe os cordelinhos na
Europa, que existe uma alternativa política e económica, e que, ainda pior,
essa alternativa pode mesmo funcionar.
Sobre
a Grécia já muito foi dito. Na sua maioria mal, diga-se. A pressa em catalogar
o novo governo, tão depressa apresentado como uma coligação de perigosos
radicais como acusado de ter 'vendido' as suas promessas, tem sido pródiga em disparates. Desde
os esquemas morais que reproduzem os estereótipos xenófobos de algum norte da
Europa contra os madraços do sul que não querem trabalhar e tudo fazem para um
'subsidiozinho', até ao velho agitar do papão comunista, como fez há dias Paulo
Rangel nas páginas do Público.
Tanta
agitação por duas razões. Medo e ignorância. O primeiro, o medo, é o resultado
da síndrome do 'conto de crianças', para usar as palavras de Passos Coelho.
Pode lá um governo ter o dislate de querer cumprir as suas promessas eleitorais
e colocar os direitos dos seus cidadãos à frente dos dos credores? Se a moda
pega ainda começam a exigir o mesmo por cá e isso seria uma 'maçadoria'. Mais
vale neutralizar já o problema e tentar quebrar quem a tal se propõe. É isso
que explica que, de acordo com a imprensa internacional, Portugal e Espanha apareçam
na linha da frente dos opositores a uma tentativa negociada para a crise -
acima de tudo humanitária - que se vive na Grécia.
A
segunda razão para a agitação deriva da ignorância. É ela que explica o notável
paradoxo resultante da leitura da imprensa, nacional e internacional, nos dias
imediatamente a seguir às eleições. Enquanto, por cá, Tsipras e o Syriza eram
retratados como uns radicais sem sentido, de extrema esquerda e
anti-europeistas, na imprensa 'socialista' como a Economist, Finantial Times,
NY Times ou Bloomberg a versão era que a Europa deveria aproveitar a
oportunidade entreaberta pelo Syriza para tentar resolver os problemas do euro
e colocar um travão na austeridade que tem afundado a economia europeia. Com os
esquemas de análise destruídos por uma vitória sem precedentes, foram precisos
2 ou 3 dias para refazer o alinhamento e começar a tentar analisar o que está
em curso na Europa.
E
o que se passa é que, por estranho que pareça, os radicais dogmáticos não
vestem as cores do Syriza. Pelo contrário. A austeridade que tomou conta da
Europa é o programa mais radical das últimas décadas. Extremista no seu
resultado (um mar de desempregados, deflação, crescente desigualdade
rendimentos e aumento assimetrias entre países do norte e sul da Europa) e
extremista na forma como recusa toda e qualquer alternativa, independentemente
da vontade (que se julgava) soberana dos povos.
Não,
o Syriza não capitulou na necessidade de reestruturar a dívida e de colocar a
sua renegociação no centro de qualquer política que desista da austeridade.
Pelo contrário. Ao condicionar o pagamento da dívida ao crescimento económico,
ao mesmo tempo que se compromete a ter contas equilibradas, apresenta o mais
ambicioso programa de reestruturação da dívida soberana desde que a Alemanha,
em 1953, viu os aliados concederem-lhe um programa em tudo idêntico. Contas
equilibradas pela via do crescimento, note-se, não subjugando os direitos de
cidadania, como tem acontecido até aqui, às pretensões de quem emprestou, não
por altruísmo, mas, em larga medida, por especulação.
A
ladainha das obrigações que os gregos têm que cumprir 'custe o que custar', tem
muito que se lhe diga. A começar pelo óbvio. E as responsabilidades pelo
falhanço rotundo do programa da troika, que transformou um problema de contas
públicas numa crise humanitária, quem as assume? O reverso da medalha da
"ajuda" europeia foi destruição de 25% da riqueza do país e 3 milhões
de gregos sem acesso aos cuidados de saúde. Pagar a dívida, que entretanto
passou de 117% para 185%, isso sim, é um conto de crianças. Sim, a Grécia tem
que cumprir com as suas obrigações, mas, confrontado com a evidência que o
caminho seguido está a destruir o país, a obrigação moral de qualquer governo
é, antes de mais, para com o seu povo. É o que está a ser feito. Por muito que
isso incomode a direita nacional, que vê no reflexo dessa imagem de
independência e respeito pelos compromissos a mais poderosa denúncia do seu
rotundo falhanço e alinhamento com os interesses financeiros.
PS: A vertigem
em enviar um sinal de dureza à Grécia, fez com que fosse o BCE, um organismo
não democrático e sem mandato popular, o primeiro a pressionar o governo grego.
Que o tenha feito antes mesmo das reuniões dos ministros das finanças e do
Conselho Europeu é sintomático sobre a natureza do verdadeiro poder na Europa.
Mais. Um dos principais mandatos do Banco Central Europeu é evitar a
instabilidade do sistema financeiro. Ora, ao condicionar unilateralmente o
financiamento do sistema bancário grego, o BCE tornou-se, ele mesmo, o agente instigador
da queda abrupta do valor da banca grega. Entre defender a estabilidade
europeia e a defesa do status quo, o BCE preferiu fazer a política da
austeridade. Não perceberam nada do que aconteceu, no passado dia 25 de janeiro
na Grécia, e muito menos olharam para o realinhamento do mapa político europeu.
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