Washington
Novaes*
Sai
década, entra década e não mudamos. Nosso mundo institucional continua cego e
surdo ao que convenções e tratados, além de relatórios de pesquisadores, têm
dito: a biodiversidade é um dos bens mais decisivos; sem ela, não só
perderíamos a possibilidade de manutenção e reposição das espécies, como
afetaríamos tudo o que está ao redor – bens naturais, recursos hídricos, regime
do clima. E depois da Convenção da Biodiversidade (ONU), da qual o Brasil é
signatário (1992), vários outros documentos têm enfatizado que o caminho mais
eficaz para a conservação da biodiversidade está nas reservas indígenas, mais
eficazes até que reservas, parques e outras áreas protegidas.
Parece
que nada disso existe. A Câmara dos Deputados aprovou – e vai ao Senado –
emenda ao substitutivo do ruralista Alceu Moreira (PMDB-RS) para o projeto de
lei do Executivo (7.735/2014) que facilita o acesso de pesquisadores e de
empresas aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade e agrobiodiversidade, sem “consentimento prévio informado”, ao
contrário do que se pensara exigir. E isso é fruto de acordo para permitir
maiores ganhos a indústrias farmacêuticas e de cosméticos, além de
agroindústrias – com prejuízos para povos e/ou grupos que detêm esses conhecimentos,
principalmente grupos indígenas. Para ficar mais claro: em certos casos, basta
uma palavra para abrir à apropriação de terceiros esses conhecimentos – basta,
por exemplo, chegar a um grupo indígena e ouvir de um de seus membros que esta
ou aquela planta ali é usada tradicionalmente para tratar desta ou daquela
doença. Sem precisar de “consentimento prévio informado” e de pagar.
Isso
também anula em parte o reconhecimento do papel fundamental de índios e
comunidades tradicionais na conservação da biodiversidade de vegetais, animais,
micro-organismos, óleos, resinas, frutos da floresta. E dificulta que o Brasil
venha a ratificar a Convenção de Nagoya, de 2010, que protege esses
conhecimentos e exigiria o “consentimento prévio” às informações e a “repartição
justa e equitativa” da exploração. Mas no substitutivo aprovado – que teve
manifestação contrária da Fundação Nacional do Índio – substituiu-se esse
“consentimento prévio informado” por “anuência prévia”, além de substituir
“poder de decisão” por “participar da tomada decisões”.
Não
bastasse, o presidente da Câmara dos Deputados confirmou (Instituto
SocioAmbiental, 5/2) que será desarquivada, a pedido da bancada ruralista, a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, que transfere do governo federal
(Funai) para o Congresso a última palavra sobre a oficialização e demarcação de
terras indígenas, unidades de conservação e territórios quilombolas. Os índios
podem perder, por essa nova via, o que a própria Constituição de 1988 lhes
assegurou. Mas acata-se a visão da ministra da Agricultura, Kátia Abreu,
segundo quem a PEC 215 “não é risco”, já que “os índios saíram da floresta e
passaram a descer para áreas de produção”.
Por
que, então, não continuar desmatando na Amazônia e no Cerrado, principalmente? Por
que não expandir as pastagens, embora apenas 40% dessas pastagens (Amazonia.org.br –
Radiografia das Pastagens, estudo conjunto com a Universidade Federal de Goiás
e a Secretaria de Assuntos Estratégicos do Paraná) estejam “em boas condições”
e 12% sejam “vulneráveis a uma seca prolongada”? Em geral, afirma o estudo, a
gestão dessas pastagens é “ineficiente” e a média ali é de apenas uma rês por
hectare (fora do Brasil a média chega a seis cabeças por hectare). E só no
Cerrado já são 700 mil quilômetros quadrados de pastagens. Ao todo, o Brasil
tem mais de 210 milhões de cabeças de gado bovino em 160 milhões de hectares de
pastagens.
Um
dos produtos finais desse processo está nas taxas de desmatamento da Amazônia
(embora em 2014 tenham diminuído 83% em relação a 2 012). Entre 1988 e 2012
foram 15.871 quilômetros quadrados médios por ano; de 2004 a 2012, 4.571
quilômetros quadrados (Painel de Indicadores Ambientais, Ministério do Meio
Ambiente, 19/12/14). Mas o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
lembra que em 2013 elas aumentaram 28%.
E
que importância tem tudo isso – pensarão os defensores da PEC 215 – na questão
dos recursos hídricos, que hoje estão no centro dos nossos dramas?
Principalmente no Cerrado, onde o desmatamento e a impermeabilização dificultam
a infiltração de água no subsolo, onde nascem rios que correm para as três
grandes bacias brasileiras. Só lhes importa dizer que a agropecuária responde
por mais de 20% do PIB brasileiro, gera mais de R$ 1,1trilhão, e a pecuária
produz 30% disso tudo, ante 70% da agricultura (Mapa, 29/12/14). Como se não
houvesse outras graves questões a ser também consideradas.
Satélites
artificiais não estão detectando mais de 4 mil focos de queimadas em áreas de
vegetação (IGDNews, 4/2/15), o número mais elevado desde maio de 1999? Mas
importante, para os defensores do economicismo à outrance, seria lembrar apenas
que vamos criar em 2015, em mais 2,2 milhões de hectares amazônicos, novos
projetos de exploração de florestas públicas – embora muitas das que já foram
implantadas tenham sido processadas pelo Ibama e outros órgãos por extração de
madeira muito além dos limites permitidos. Afinal, argumentam os defensores
desses caminhos, o Brasil precisa produzir mais madeira, ainda que já tenhamos
ultrapassado o milhão de metros cúbicos anuais (só no que é vistoriado e
controlado).
E
não bastasse, cuida-se também da liberação de variedades transgênicas de
eucalipto. Talvez os pais da ideia devessem conversar com proprietários no
Cerrado que lamentam haver entrado por esse caminho, que tem levado ao
desaparecimento de nascentes – pois não se tem estudos sobre o ciclo
hidrológico completo do eucalipto, que chega a 30 anos, para saber qual é o uso
total de recursos hídricos.
* Washington
Novaes é jornalista.
**
Envolverde - Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.
Sem comentários:
Enviar um comentário