Gabriel
Brito – Correio da Cidadania
O
ano econômico brasileiro começou recheado de medidas de contenção de
investimentos na área social e trabalhista, plenamente ao gosto do mercado e
dos ministros escolhidos para contentá-lo. Como resposta, os sindicatos
prometem não aceitar os cortes com a mesma solenidade de outros momentos, o que
se explica por um cenário de crise econômica que ameaça seriamente a renda e o
emprego de suas bases. Para discutir tal cenário, o Correio da Cidadania
entrevistou a economista Rosa Maria Marques.
“É
preciso lembrar o já sabido: é o investimento que permite a manutenção de um
crescimento contínuo na sociedade capitalista. Ocorre que o investimento está
baixo em todo o mundo, com exceção da China. E isso não só porque a economia
capitalista enfrenta uma crise profunda e longa, mas por conta da mundialização
e a desregulamentação dos mercados, no qual se destaca o financeiro. Assim, à
parte as dificuldades que existem no Brasil e que foram aprofundadas com o
câmbio valorizado, soma-se esse ‘traço geral’”, explicou.
No
entanto, do momento em que o país se encontra rodeado de outras crises, como da
água e da energia, é necessário discutir o próprio modelo de desenvolvimento e
seu eventual esgotamento. Além disso, Rosa Marques, também professora da PUC-SP,
destaca a posição de submissão do governo brasileiro ao mercado, o que
contribui para o agravamento do quadro. “No Brasil, sempre foi importante o
papel do investimento público. Ocorre que este é limitado pelo poder dos
credores da dívida, pela via da realização dos superávits primários”, lembrou.
Quanto
às medidas específicas sobre os direitos trabalhistas, a economista relativiza
algumas delas, umas por não terem tanto peso, outras porque, na realidade, já
eram alvo de debates técnicos desde outros tempos. Apenas lamenta que não se
tenha passado pelo crivo do Codefat (Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo
ao Trabalhador), onde tradicionalmente se tratam tais questões de maneira mais
equilibrada.
De
toda forma, a entrevista prevê tempos difíceis para os trabalhadores, inclusive
para além das medidas mais publicizadas. “O que realmente é digno de nota é que
um dos argumentos utilizados foi o déficit da Previdência, mas nada foi dito
sobre a desoneração de 56 setores da economia e sobre a Seguridade Social
continuar superavitária. O governo Dilma acabou de aprovar a entrada do capital
estrangeiro na saúde. Ao mesmo tempo, a PEC 358 está tratando os Royalties do
Petróleo destinados à saúde não como um acréscimo de recursos, mas como sendo
contabilizados no interior do valor já praticado. Enfim, não é só cortando
benefícios ou dificultando o acesso a eles que o governo está pensando em fazer
caixa”, destacou.
A
entrevista completa com Rosa Maria Marques pode ser lida a seguir.
Correio
da Cidadania: Em primeiro lugar, a estagnação da economia em 2014, as
perspectivas de um ano ainda mais arrochado em 2015, a crise energética e a
crise hídrica são demonstrações de que o modelo de “desenvolvimento” que
vigorou durante a era do lulismo está no limite ou até se esgotou?
Rosa
Maria Marques: Desde o início de 2014, dizíamos que o crescimento fundado
na expansão do mercado interno – via políticas de transferência de renda,
crédito para os setores de mais baixa renda, valorização do salário mínimo,
entre outras políticas – havia se esgotado. E, pior do que se esgotado, nada
havia sido feito para alterar a situação do câmbio “fora do lugar”, isto é, a
valorização do real, e impedir a destruição de parte importante da indústria.
As
políticas voltadas para a expansão da capacidade de compra dos setores de renda
mais baixa, bem como o ciclo expansivo das commodities e o desempenho da China,
criaram a falsa impressão de que era possível manter a economia crescendo,
mesmo que a taxas não muito expressivas, a despeito do que ocorria no resto do
mundo. O ano de 2014 mostrou quão falso isso era.
Evidentemente,
não estou dizendo que as políticas de transferência de renda, de valorização do
salário mínimo e de ampliação da capacidade de compra dos setores de menor
renda não deveriam ter sido feitas. O que estou dizendo é que a capacidade de
essas políticas resultarem na ampliação ou sustentação da demanda tem um
limite. Na sociedade capitalista, o que permite manter taxas contínuas de
crescimento é o investimento, algo sabido.
A
questão da crise energética e da crise hídrica não está diretamente relacionada
ao governo Dilma, a não ser por sua clara incompreensão do que se passa em
termos de mudança climática e por decisões tomadas que aprofundam os problemas
nessa área no Brasil. Embora se possa dizer que faltaram investimentos
públicos, os especialistas em meio ambiente há muito vêm dizendo que o
desmatamento da Amazônia – Antonio Nobre nos diz que são destruídas 2.000
árvores por minuto na região -, que vem se somar ao que foi feito muito antes,
tal como a destruição da Mata Atlântica, já alterou o clima no Brasil.
O
baixo volume e duração do período de chuva e a ampliação da estação seca são
produtos dessa mudança. Mas os poderes públicos continuam a desconsiderar esse
fato e, inclusive, a incentivar ou permitir, por sua ausência regulatória, a
ocupação de áreas que deveriam ser preservadas e/ou recuperadas. Isso para os
negócios de todos os tipos ou mesmo para a ocupação imobiliária.
Correio
da Cidadania: Neste contexto, o que diria, especificamente, sobre o
investimento público e privado no Brasil nos últimos anos?
Rosa
Maria Marques: É preciso lembrar o já sabido: é o investimento que permite
a manutenção de um crescimento contínuo na sociedade capitalista. Ocorre que o
investimento está baixo em todo o mundo, com exceção da China, e não só aqui. E
isso não só porque a economia capitalista enfrenta uma crise profunda e longa,
mas porque houve, nas últimas décadas, com a mundialização e a
desregulamentação dos mercados, nos quais se destaca o financeiro, a ampliação
de maneira absurda das possibilidades de o capital ampliar-se sem ter de se
preocupar com investimentos no sentido restrito do termo.
E
isso é dado pelo mercado de títulos, ações e derivativos, que perfazem várias
vezes o PIB mundial. Vários economistas já chamaram atenção para o fato de que,
desde o início dos anos 1990, houve um descolamento entre o investimento e os
lucros, isto é, se antes eles evoluíam juntos, criou-se uma brecha, de modo
que, cada vez mais, parte dos lucros não é reinvestida, mas, sim, dirigida para
o mercado financeiro de capital especulativo ou fictício, com rentabilidade
extraordinária.
Assim,
à parte as dificuldades que existem no Brasil e que foram aprofundadas com o
câmbio valorizado, soma-se esse “traço geral” que caracteriza o capitalismo
contemporâneo, o que empurra ainda mais o nível do investimento para baixo.
Mas
estamos falando de investimento privado. E, no Brasil, sempre foi importante o
papel do investimento público. Ocorre que este é limitado pelo poder dos
credores da dívida, pela via da realização dos superávits primários – termo que
hoje ficou conhecido por grande parte da população brasileira, tal foi a
avalanche de comentários e notícias veiculadas na imprensa, televisiva ou não,
sobre um pretenso descontrole total dos gastos públicos...
Na
impossibilidade, real ou política (enquanto escolha de governo), de realização
de investimentos públicos significativos, e na ausência ou inibição do privado,
não há como a economia crescer.
Correio
da Cidadania: Como analisa as primeiras medidas econômicas adotadas pelo
segundo mandato de Dilma Rousseff, entre os momentos finais de 2014 e iniciais
de 2015?
Rosa
Maria Marques: As medidas tomadas ao final de 2014 e que prosseguem neste
início de ano apenas mostram que o governo Dilma é totalmente refém do que se
convencionou chamar de mercado. Foi o mercado que introduziu como inexorável a
realização de superávits primários (mesmo que em nível inferior do que já foi
obtido no passado), impondo contingenciamentos no orçamento e buscando reduzir
gastos em todos os lados.
A
opção por reduzir ou conter os gastos públicos, que constituem um importante
componente da demanda interna do país, em um quadro de uma economia estagnada
ou, como querem alguns, caminhando para uma recessão, certamente irá deprimir
ainda mais a situação econômica.
Correio
da Cidadania: A partir do reforço dessa ótica conservadora, quais efeitos você
espera sobre seguro-desemprego, pensão por morte, abono e auxílio doença?
Rosa
Maria Marques: Não há, a princípio, problema em se alterarem as condições
de acesso e mesmo certos aspectos da concessão de benefícios. Isso é feito
corriqueiramente junto aos sistemas de proteção, sempre que for considerado
necessário. Contudo, no caso específico das medidas que foram encaminhadas,
embora elas ainda necessitem aprovação do Congresso Nacional, alguns problemas
se colocam.
No
que se refere ao seguro-desemprego, a primeira coisa que chama atenção é que a
medida encaminhada não foi objeto de discussão do Codefat (Conselho
Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador), onde participam,
paritariamente, empresários, trabalhadores e governo. Não há, contudo, nenhuma
regulamentação que determine que matéria desse teor fosse nele discutido, mas,
dada a tradição democrática desse conselho, e a importância da mesma sobre a
vida do trabalhador, era de se esperar que isso ocorresse. O mais grave é que,
se for confirmada a piora da situação econômica, o que implica aumento do
desemprego, é possível que parte dos desempregados não tenha como solicitar o
seguro-desemprego, caso não comprove vínculo empregatício junto ao mercado
formal nos últimos 18 meses. Enfim, é um mau momento para mudar as regras de
acesso.
Quanto
ao abono, mesmo considerando que isso pode ser entendido como uma perda de
direito, não tinha muito fundamento, em termos de justiça no campo da proteção
social, a concessão de um salário mínimo para todos trabalhadores que ganhassem
até dois salários mínimos, independentemente do número de meses trabalhados no
ano. As novas regras exigem que se tenha trabalhado pelo menos seis meses, de
forma ininterrupta, no lugar de um, e o pagamento passa a ser proporcional ao
tempo trabalhado, tal como ocorre com o 13º. O que se pode discordar é sobre a
exigência de seis meses ininterruptos, bem como o fato de, mais uma vez, não
ter havido prévia discussão com as entidades e sindicatos que representam os
principais interessados. Agora, a bem da verdade, estas e outras propostas de
ajustes são discutidas pelos especialistas da área há muito tempo.
No
que se refere à pensão por morte, houve piora nas condições de acesso, pois foi
ampliado o tempo mínimo de contribuição (e de comprovação da união) para que o
cônjuge ou companheiro (a) tenha direito à pensão, bem como foi introduzida a
expectativa de vida do cônjuge sobrevivente e dos filhos na definição do tempo
de concessão. Em outras palavras, foi extinta a concessão perpétua para
qualquer idade: para as condições demográficas atuais, somente aqueles com 44
anos ou mais (com expectativa de sobrevida de 35 anos), têm direito à pensão
durante toda sua vida. O tempo para os demais cônjuges ou filhos é função de
suas expectativas de vida. Aspectos dessas alterações, principalmente quanto à
concessão perpétua, sempre foram objeto de muita crítica entre os
especialistas. Contudo, chama atenção que nada mudou quanto às regras dos
militares, somente afetando aqueles regidos pelo INSS e os funcionários
públicos.
A
mudança do auxílio-doença me parece ainda mais problemática, pois o trabalhador
irá receber de acordo com a média das últimas 12 contribuições, no lugar de 91%
de seu salário (limitado ao teto do INSS). Certamente isso irá significar uma
redução do nível do benefício, o que é particularmente preocupante em caso de
doença, quando despesas aumentam, ainda que o mesmo tenha cobertura pública ou
privada dos cuidados com a saúde.
Mas
pouco importa se parte dessas medidas encontra apoio em termos de justiça
previdenciária. O que realmente é digno de nota é que um dos argumentos
utilizados para seu encaminhamento foi o déficit da Previdência Social, e nada
foi dito sobre a desoneração permanente na contribuição sobre a folha de
salários, de 56 setores da economia, e que a Seguridade Social, a despeito de tudo,
continua superavitária. Vale lembrar que os recursos da Seguridade, entre os
quais estamos incluindo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), são recursos
dos trabalhadores, muito embora a Desvinculação de Receitas da União (DRU)
promova um “confisco” de 20%, exatamente com vista ao superávit primário.
Correio
da Cidadania: O que se pode, por sua vez, esperar dos ministros escolhidos por
Dilma na área econômica no longo prazo, considerando que os próprios
representantes do governo anunciam que os ajustes serão necessários por pelo
menos dois anos?
Rosa
Maria Marques: Não há longo prazo à vista. O que iremos assistir, e já
estamos assistindo, é ao recrudescimento das lutas em defesa do emprego, dos
salários e dos direitos sociais. Para alguns setores da esquerda, enquanto o
governo, mesmo fazendo inúmeras concessões ao capital financeiro, ao
agronegócio e às empresas em geral (vide as desonerações), continuasse a manter
nível baixo de desemprego, elevação do salário mínimo, ampliação do acesso à
universidade, políticas de transferência de renda, entre tantas outras ações
que sem dúvida beneficiaram parcelas importantes da população brasileira, tudo
estaria bem.
Contudo,
quando aquilo que parecia ser uma concessão – para acalmar os mercados – passa
a ser o determinante dos rumos gerais do governo, parte de sua base de apoio se
desloca e se põe a lutar pela defesa daquilo que lhe é mais caro: emprego e
renda, sendo que nesta última se incluem os direitos sociais.
E
para completar, gostaria de tocar em um assunto da maior importância. O governo
Dilma acabou de aprovar a entrada do capital estrangeiro na saúde, o que era
vetado pela lei 8.080, de 1990. Ao mesmo tempo, a PEC 358 está, entre outras
coisas, tratando os Royalties do Petróleo destinados à saúde não como um
acréscimo de recursos para a área, mas como sendo contabilizados no interior do
valor já praticado. Ainda nessa PEC, a proposta do Projeto de Iniciativa
Popular, conhecida como Saúde +10, subscrito por 2,2 milhões de
brasileiros, foi totalmente desconsiderada. Enfim, não é só cortando benefícios
ou dificultando o acesso a eles que o atual governo está pensando em fazer
caixa.
Correio
da Cidadania: Que efeitos podem ser projetados sobre a sociedade brasileira e
os trabalhadores?
Rosa
Maria Marques: Serão tempos muito difíceis. A capitulação ao mercado, em
matéria de política econômica, com todos os desdobramentos que acarreta, terá
consequências negativas para os trabalhadores. Elas só não serão maiores se
estes continuarem (como já estão fazendo) a se mobilizar na defesa do emprego,
dos salários e dos direitos sociais, como disse anteriormente.
Gabriel
Brito é jornalista.
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