Isabel
Moreira – Expresso, opinião
Quarenta
anos depois do 25 de Abril somos bombardeados por factos, declarações e
decisões que fazem sangrar o que de mais sagrado está simbolizado no cravo
vermelho e nada acontece: há vagos comentários, critérios dúplices de análise,
falta de atenção, mau jornalismo, nada acontece.
Caiu
o mundo com as declarações de Mário Soares sobre um juiz de instrução, caiu o
mundo, foi o horror, o homem dizer uma frase forte dirigida a juiz de
instrução, mas esse mesmo coro de horror ficou calado quando a Ministra da
Justiça, ela sim, uma governante em funções, desafiou o Tribunal Constitucional
após o chumbo por unanimidade da sua proposta de enriquecimento ilícito,
deixando sempre no ar que "bem sabe que alguns ficam desconfortáveis com a
proposta", insinuando um mundo de bandidos e de puros, separados por uma
trincheira que a própria traça, colocando-se do lado da "moralidade
destemida".
Sim,
um horror um histórico lutador pela liberdade soltar uma frase, logo todos os
jornais regados de defensores da separação de poderes, essa coisa sagrada
deitada ao lixo por Mário Soares, mas não pela Ministra da Justiça em funções
que, aquando do chumbo do OE de 2014 não temeu, face à anemia geral, e afirmou
que "todos os órgãos são escrutináveis, até o TC!" Logo vieram as teses
absurdas de chumbo de primeiro ano de submeter os juízes a sanções
"jurídicas" e a tutela europeia. Do que se tratou foi de uma
descarada chantagem sobre o TC, de uma despudorada violação do princípio da
separação de poderes por parte de quem representa, no ativo, o Estado.
A
mesma Ministra que usa a separação de poderes como mote de campanha, avisando à
plebe que teme pela vitória do PS, pelo que a mesma fará ao princípio, a mesma
Ministra que se arroga de ser a reformadora esperada de há 200 anos e correndo
tudo mal culpa os funcionários, depois os dirigentes, depois demite e
finalmente nomeia uma magistrada sem concurso público, mentindo quanto à não
necessidade do mesmo.
Em
cada momento de pico máximo de horror da sua governação, como no CITIUS, tenta
mudar de assunto, como aconteceu com a "lista de pedófilos",
lembram-se? Onde está essa base de dados? O que lhe aconteceu? Como é possível
não haver comentadores ou jornalistas a darem por este truque infantil de
desviar o olhar para o lado para não se falar do que está na nossa cara?
Como
é possível ter-se por séria uma declaração sobre drogas leves logo a seguir ao
relatório da ONU que faz um retrato negro da justiça portuguesa?
Como
é possível admitir-se por normal alguém avisar de cada vez que fala que é
"corajosa" e ao mesmo tempo ver essa mesma pessoa curvar-se perante
as corporações sempre que está em dificuldades? Não foi o que aconteceu com o
aumento do vencimento dos juízes e magistrados do ministério público, por
exemplo?
Temos uma Ministra da Justiça que contribui sempre que pode para um clima insuportável de suspeição generalizada. Dizem que o povo gosta, que o povo quer os políticos todos escrutinados, esses safados, mas seria bom recordar que quando se embarca na vaga demagógica da transparência pornográfica ela não se fica por uns quantos. Chegará o dia em que os poderes já latíssimos da administração fiscal terão a fome de todos os cidadãos e a exigência da publicação de todas as suas vidas.
Temos uma Ministra da Justiça que contribui sempre que pode para um clima insuportável de suspeição generalizada. Dizem que o povo gosta, que o povo quer os políticos todos escrutinados, esses safados, mas seria bom recordar que quando se embarca na vaga demagógica da transparência pornográfica ela não se fica por uns quantos. Chegará o dia em que os poderes já latíssimos da administração fiscal terão a fome de todos os cidadãos e a exigência da publicação de todas as suas vidas.
Os
Partidos têm o dever de não ter medo. De dizer não à híper-criminalização. De
dizer não à invasão do Estado na nossa liberdade negativa, aquela que não afeta
terceiros. De dizer não ao combate à corrupção que se transforme numa inversão
de Abril. De repensar o exagero e a desproporcionalidade com que as escutas são
usadas. De valorizar a liberdade. De atacar a fuga ao segredo de justiça. De
não admitir que qualquer cidadão, seja ele qual for, não veja no sistema de
justiça precisamente um sistema de proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.
De fortalecer o poder político. De exigir fazer política sem medo de ameaças,
de campanhas populistas, da própria fala. Porque falar de política e fazer
política foi um dos sonhos de Abril.
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