José
Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião
Nos
últimos dias multiplicaram-se um pouco por todo o mundo, de Lisboa à Cidade da
Praia, passando por Londres, Paris e Maputo, as manifestações de solidariedade
para com os presos políticos angolanos. Fiquei particularmente impressionado
com duas cartas dirigidas ao Presidente José Eduardo dos Santos, ambas
assinadas por personalidades que estiveram presas por combaterem regimes
totalitários. A primeira foi escrita por Alípio de Freitas, um antigo padre
português que ajudou a fundar no Brasil, nos anos 60, as famosas Ligas
Camponesas e, pouco depois, o movimento Acção Popular. Preso pela ditadura
brasileira, em 1970, só seria solto oito anos mais tarde, tendo então ido viver
para Moçambique. Alípio de Freitas sempre apoiou o MPLA. Zeca Afonso
dedicou-lhe uma canção com o seu nome. A segunda carta foi escrita pela
jornalista Diana Andringa, Manuel Macaísta Malheiros, Maria José Pinto Coelho
da Silva e Mário Brochado Coelho, presos pela PIDE, também em 1970, por
ligações ao MPLA.
Todos
estes antigos presos políticos são unânimes a constatar as semelhanças entre o
regime que os julgou e condenou e o actual sistema angolano. Todos se
surpreendem pelo facto de antigos camaradas, pessoas que, como eles, se bateram
pela independência de Angola, pessoas que acreditavam num mundo mais justo e
mais livre, estarem agora à frente de um regime tão ou mais odioso quanto
aquele que combateram enquanto jovens. Eis a pergunta, velha como o mundo: como
é que um jovem idealista, de coração puro, se transforma num tirano?
Se
fosse possível trazer aquele José Eduardo dos Santos, na integridade e
elegância dos seus vinte anos, desde a vertigem do passado, 1962, até estes
nossos dias difíceis, é muito provável que o mesmo fosse visitar Luaty à
clínica onde está internado, para o abraçar, e a seguir se suicidasse – matando
assim o ditador frio e silencioso em que, entretanto, se transformou.
Os
poucos intelectuais que ainda não se envergonham de vir a público defender José
Eduardo dos Santos neste desastroso processo dos jovens democratas acusados de
tentativa de golpe de Estado, insistem num aspecto básico: o regime angolano
não é uma ditadura, e ao invés de organizar manifestações, os jovens, como
chegou a afirmar o Presidente da República, deveriam canalizar o seu
descontentamento e as suas propostas, organizando-se em partidos políticos. Vou
fingir que acredito que eles acreditam neste argumento e, com muita paciência,
tentar explicar o óbvio. Nenhum presidente permanece 35 anos no poder, de forma
ininterrupta, numa democracia. Ah, dizem os defensores da nossa “democracia”,
no caso do José Eduardo dos Santos isso só vale a partir de 1992, ano em que se
realizaram as primeiras eleições. A ver se compreendo, então de 1979 a 1992
José Eduardo dos Santos foi um ditador – certo? Espero que pelo menos nesse
ponto estejamos todos de acordo. Acontece, porém, que em 1992, José Eduardo dos
Santos não ganhou as eleições. Logo, continuou a ser um ditador, desde 1992 até
2008, que foi quando se realizaram as segundas eleições.
Não
me recordo de haver na História das democracias nada semelhante. Nem sequer
vale a pena falar na forma como decorreram os dois últimos actos eleitorais ou
nos mecanismos de concentração de poder entretanto adoptados.
Não,
o regime angolano não é uma democracia. Em democracia, por outro lado, os
cidadãos podem e devem contestar as práticas governamentais em manifestações,
vigílias, e através de quaisquer outros processos não violentos. Mais: a
qualidade de uma democracia pode avaliar-se pelo grau de sofisticação da sua
sociedade civil, isto é, pelo número de estruturas não partidárias, como ONG,
sindicatos, associações profissionais, etc., que intervêm activamente na vida
pública do país.
Democracias
não são derrubadas através de manifestações. Ditaduras são – e ainda bem. Os
verdadeiros democratas não receiam manifestações. Os ditadores sim – e ainda
bem.
Lá,
no seu palácio, José Eduardo dos Santos está tão assustado que já nem sequer
aparece para fazer os discursos da praxe. Tem bons motivos para ter medo. O
passado perdeu-lhe o respeito e futuro inteiro está contra ele.
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