Baptista-Bastos*
– Jornal de Negócios, opinião
A
Direita está assustada com a perspectiva de perder lugar à mesa. E renova o
medo com o papão comunista, que já não faz sentido, nem assusta as gerações
mais novas, como se tem visto.
O dr. Cavaco vai indigitar o dr. Passos para formar Governo. Obedece, assim, às normas, e às características da sua formação. É um homem temeroso, amedrontado quando em agrupamentos ou multidões, pouco à vontade, reverente às hierarquias, modelado pela sua época e pela rigidez familiar. Transporta consigo vários verdetes pessoais e não consegue dissimulá-los. Os mais notórios são Mário Soares, Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes e José Sócrates. Possui da democracia um conceito amolgado e não é muito propenso à leitura. Coube-nos em sorte este homem como primeiro-ministro e como Presidente da República, dos piores da democracia portuguesa. O estilo rígido e o ar de espeque, tão do agrado dos portugueses veneradores e cerimoniosos, integraram-se num tempo, felizmente a acabar com celeridade.
Antes mesmo de consultar os partidos, como de sua obrigação constitucional, o dr. Cavaco apressou-se a dizer ao dr. Passos, seu estimado, que começasse a formar Governo. Ele sabia que a Esquerda era maioritária e que, desta vez, as coisas poderiam ser outras. E foram como é sabido. Algumas ruínas da Guerra Fria moveram-se logo quando António Costa começou a dialogar com os partidos à sua esquerda. O inexcedível Francisco Assis, mais gelado e furioso do que habitualmente, declarou ser "inútil" as diligências efectuadas; e Carlos Silva, secretário-geral da UGT, manifestou o interesse em que o PS alinhasse, isso sim, com a Direita. Através destes dois significativos exemplos pode inferir-se o albergue espanhol em que o PS se tornou, acentuadamente, nos últimos anos.
A coligação vai ser, pois, nomeada. Mas cairá no Parlamento como o têm afirmado os partidos de Esquerda. O acontecimento é histórico, e já era tempo de a sociedade portuguesa ser mais aberta. As coligações entre PS e PCP deram frutos na Câmara Municipal de Lisboa, com João Soares; e, se quisermos exemplos europeus, eles aí estão com a "ostpolitik" de Willy Brandt, e a coligação, em França, com o PS de Mitterrand e o Partido Comunista.
A subida do Bloco de Esquerda constituiu uma advertência de que uma geração mais nova está cansada desta democracia de alternância sem alternativa, e a revelação de Catarina Martins trouxe para o palco da política uma inovação apoiada numa cultura política e numa informação invulgares. O próprio PCP teve de se renovar, recuperando, como disse um jornal, a lição de Álvaro Cunhal, no que concerne à adaptação aos novos tempos.
A Direita está assustada com a perspectiva de perder lugar à mesa. E renova o medo com o papão comunista, que já não faz sentido, nem assusta as gerações mais novas, como se tem visto. Um Governo de Esquerda sucederá à inevitável queda da coligação? A verdade é que Catarina Martins declarou que a coligação tinha acabado naquele dia, e que os semblantes de Passos Coelho e de Paulo Portas pareciam os de funcionários de uma casa de caixões. Porém, as batalhas políticas são sempre difíceis e muitas vezes dolorosas.
Nada vai ser fácil a partir da altura em que a Esquerda assumir funções. Todavia, as coisas não podiam continuar nesta rotina letal. Assistimos a movimentos que se mobilizam por toda a Europa, de contestação e reparo a políticas desumanas que apenas consomem os pobres e engordam os ricos. O recente caso da Grécia e o gozo insano com que o capitalismo aplaudiu a queda do projecto do Syriza (caiu mesmo?) roça a obscenidade.
Aconteça o que acontecer, os factos ocorridos nas últimas semanas são de molde a acreditarmos que, por vezes, a História não é uma deusa tão cega como se faz crer. E nem sempre os povos estão adormecidos no letárgico sono do medo e da insegurança.
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Considerado um dos maiores prosadores portugueses contemporâneos,
Baptista-Bastos (Armando Baptista-Bastos) nasceu em Lisboa, no Bairro da Ajuda
(que tem centralizado em vários romances e numerosas crónicas), em 27 de
Fevereiro de 1934. Frequentou a escola de Artes Decorativas António Arroyo e o
Liceu Francês. Começou o seu percurso profissional em «O Século», matutino em representação do
qual viajou por numerosos países. N’«O Século Ilustrado», de que foi subchefe
de Redacção com, apenas, 19 anos, assinou uma coluna de crítica
cinematográfica, «Comentário de Cinema», que se tornou famosa pelo registo
extremamente polémico. Em Abril de 1960 é despedido de «O Século» por motivos
políticos (esteve envolvido na Revolta da Sé, 1959, na decorrência da
candidatura Delgado, de que foi activista), e, devido às circunstâncias,
trabalhou na RTP numa semi-clandestinidade e com um nome suposto: Manuel
Trindade. – LER MAIS
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