Afropress,
editorial
O
combate ao racismo é parte da luta do povo brasileiro por transformações
profundas nesta República, que se ergueu e se mantém sob os escombros de quase
400 anos de escravismo, e por democracia. A erradicação das práticas oriundas
de uma ideologia – que contraria a constatação científica da inexistência de
raças – é fundamental para a superação da desigualdade e a construção de uma
sociedade baseada em outros valores, que não os da exploração do homem pelo
homem.
No
Brasil, contudo, tomou corpo e ganhou fama um certo tipo de ativismo
antirracista que acaba por reforçar o sistema racista, ao tomar negros – a
maioria da população – em símbolos, meras alegorias. É como se tivéssemos nos
reduzido a um grupo étnico, uma minoria, uma comunidade, vítimas, pedintes da
compreensão e da piedade públicas.
É
comum o uso e o abuso – de modismos conhecidos. Mimetizando a cultura de negros
norte-americanos, que autodeclaram afro-americanos, nós, os negros brasileiros,
passamos a nos designar afro-brasileiros, afrodescentes, abdicando da condição
de brasileiros, em favor desse exotismo despropositado.
Ora,
até as pedras sabem: da mesma forma como não existem raças – apenas uma, a
humana – (há consenso entre os cientistas) todos os seres humanos são
afrodescendentes. O homo sapiens nasceu na África,
portanto, o termo só serve para uma coisa: folclorizar e confundir.
A
origem desse tipo de ativismo sem noção chama-se racialismo. Conhece-se por
racialismo a crença na existência de raças biológicas e de racismo as formas de
racialismo que afirmam a superioridade de uma raça sobre outra e servem para
justificar a dominação social.
Racismo
e racialismo não são a mesma coisa, portanto. Mas, são irmãos siameses; guardam
entre si relação estreita, quase umbilical. Enquanto um advoga a hierarquia, a
superioridade; o segundo defende que cada raça deve se manter no seu
lugar (cada qual no seu quadrado), mas convivendo, se possível, sem
conflitos.
O
racialismo, como se vê, flerta com o racismo. Tem em comum com este a mesma
crença. Não combate verdadeiramente a mazela do racismo e seus efeitos
perversos, o reforça. Ambos nascem do mesmo equívoco. É uma cilada, não uma
saída.
No
Brasil, desgraçadamente, o racialismo sustenta e mantém as ações e iniciativas
dos setores majoritários disso que se apresenta e se conhece por movimento
negro chapa branca. Subordinado aos partidos – que praticam e reproduzem o
racismo institucional em todas as suas instâncias -, o racialismo mantém
e reforça a ideia dos negros como um grupo separado de uma sociedade cindida
por contradições, a principal delas, a contradição de classe. Sua principal
contribuição ao sistema racista é subordinar os negros – no caso brasileiro, a
maioria da população – à condição de símbolos.
Destituídos
de qualquer protagonismo, não tem agenda, não tem programa, não tem líderes
confiáveis. São muito comuns e frequentes em reuniões e plenárias, afirmações
do tipo “o movimento negro acha”, “o movimento negro decidiu”, “o movimento
negro entende”. Tais expressões servem apenas para confundir desinformados ou
incautos – bem intencionados ou não – além de uma injustiça histórica às
populações indígenas, de quem herdamos parte da nossa herança genética, essas
sim, vítimas e alvos de um genocídio que começou com a chegada de Cabral e
persiste até hoje.
Tome-se,
como exemplo, a atitude das principais entidades negras sobre o momento
político: não se ouviu uma única nota, um único protesto, uma única declaração,
sobre o arrocho e a degradação da vida dos mais pobres – que são, por óbvio,
negros.
Note-se
o silêncio (que não é dos inocentes) das chamadas ONGs negras bancadas pela
Fundação Ford. Quando tomam alguma iniciativa é para desembocar na
carnavalização típica da ausência de propostas (negros fazendo exibições de capoeira,
turbantes afros em profusão e as religiões de matriz africana e sua
indumentária, sendo utilizadas de forma esperta e profana), como se viu na
recente manifestação das mulheres negras em Brasília, que acabou em
performances, beijos, abraços e selfies, com a principal responsável pelo
arrocho: a presidente Dilma Rousseff.
E
por que? A explicação é simples: subordinadas a agendas dos partidos da base do
governo – PT e PC do B – tais iniciativas servem apenas para reforçar a
presença negra na sociedade brasileira como simbólica. São os afro isso, afro
aquilo; é como se tivéssemos abdicado da condição de brasileiros
submetidos às mais duras condições do capitalismo tupiniquim e ainda alvos da
herança maldita da escravidão.
Regressivo
e reacionário
Por
trás desse “movimento negro” chapa branca, - que se expressa nos partidos em
que negros são apenas personagens folclóricos – está a ideologia regressiva e
reacionária do racialismo.
Copiado
de manuais do movimento negro norte-americano, o Partido do racialismo no
Brasil não tem registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas ocupa espaços
nos governos, na Academia e garante os financiamentos de estatais e da Fundação
Ford, a chamadas entidades e intelectuais, que se apresentam como porta-vozes
das demandas seculares de milhões de pessoas, sem que jamais tenham tido
procuração ou um único voto.
É
regressivo e reacionário porque ignora a contradição fundamental na sociedade
capitalista: a contradição de classe. Ao fazer regredir a contradição
fundamental numa sociedade capitalista, à esfera biológica, transforma negros
em vítimas e ou padrões de virtude; reserva a maioria da população o lugar de
sempre: o de parcela subalterna, sub-cidadã.
É
famosa a frase de uma famosa filósofa e feminista, doutora em Educação pela USP
de que, "entre a direita e a esquerda, continuo preta”. (“Caros
Amigos” n° 35, fevereiro de 2000). A frase, dita no contexto da campanha em que
Celso Pitta, com apoio de Paulo Maluf se elegeu prefeito de S. Paulo, é
repetida por jovens inflamados, inclusive, nas redes sociais. Ignorantes (um
dos males desse tipo de visão é a despolitização dos mais jovens), prestam um
serviço ao sistema de exploração capitalista que tem no racismo um dos seus
elementos estruturantes.
O
racialismo mimetiza práticas do movimento negro norte-americano, porém, negros
americanos representam apenas 12% da população. Sim, nos EUA, os negros podem
se auto-denominar uma comunidade – já foram ultrapassados em número, inclusive,
pelos hispânicos. Mas, no Brasil, onde representamos 51,7% da população,
segundo o Censo do IBGE 2010?!!!
Há
algo muito errado quando em um país - que é o de maior população negra no mundo
fora da África -, os próprios negros abdicam da condição de brasileiros para se
dizerem afro qualquer coisa, se reduzem à condição de minoria, de uma
comunidade, o que torna a sua presença apenas simbólica e folclorizada.
O
racialismo nunca foi, não é, nem jamais será uma saída para o combate ao
racismo. O Partido do racialismo é uma cilada, não uma saída.
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