sábado, 27 de fevereiro de 2016

Brasil. A VIRADA DO GUERREIRO



Alberto Castro*, Londres

Venho acompanhando na Afropress o debate sobre o racialismo no Brasil, provocado por seu editor, Dojival Vieira, no controverso editorial ''racialismo não é saída, é cilada'' (15/01/2016) onde, ao contrário do que inequivocamente pensava e firmemente defendia, descobre agora que afinal existe um racismo em contra-mão visando um suposto ''empretecimento'' da sociedade brasileira, como sugere em "O filtro do frei e seu racialismo delirante" (11/02/2016), artigo de opinião sequente. (Leia também: http://www.afropress.com/post.asp?id=18808)

Discordo profundamente do seu novo e surpreendente posicionamento, agora alinhado ao dos "porta-vozes da Casa Grande" ou "cavaleiros do apocalipse", como no passado qualificava os contra cotas sociorraciais em benefício dos segmentos da população historicamente discriminados por mais de 500 anos. Posicionamento insistentemente argumentado no equívoco, deliberado ou não, que reduz apenas à contradição de classe os profundos problemas das desigualdades sociais e raciais no Brasil.

Confesso minha tristeza ao constatar que o combativo ativista de uma causa mais que justa se tenha negado a si mesmo e passado para o lado equivocado do argumento, ou errado da história, como diria Obama. Coincidentemente, a virada acontece em um momento em que o progressismo no Brasil sofre duros golpes com escândalos de corrupção, incapacidades em resolver alguns dos mais graves problemas que afetam a sociedade e o ressurgimento assustador de várias formas de intolerância, entre outros retrocessos.

A admiração que tenho por seu percurso de luta por um Brasil de justiça e igualdade para todos, o qual, por mero acaso, tomei conhecimento e logo me interessei passando a colaborar e divulgar incondicionalmente devido à coincidências de pensamento no essencial de seu ativismo e no jornalismo de causa que criou para o tornar mais eficaz, não me faz apoiar todas as suas palavras e avaliações. Isso ficou algumas vezes ficou bem claro em nossa troca de opiniões tanto no domínio particular quanto no da tribuna livre e pública da Afropress. Não podia, por isso, deixar de registrar minha discordância para com seu novo posicionamento.

Compreenderia melhor o argumento se ele se aplicasse à realidades europeias e não à sociedades capitalistas com fortes resquícios e legados escravocratas, estruturalmente racistas e onde a cor da pele, quanto mais clara ela for, ainda é um passaporte com isenção de visto para o sucesso, o que faz da questão racial outra das profundas, centrais e perversas contradições de tais sociedades, para além das questões de classe e de gênero, entre outras transversais ou específicas de qualquer sociedade.

Reduzir a questão das profundas desigualdades sociorracias no Brasil apenas à abordagem marxista centrada na contradição de classes, além de ir contra os seus próprios e válidos argumentos dirimidos com justeza e firmeza no passado, é resgatar e validar o arquivado conto freyriano de democracia racial, usado tanto à esquerda quanto à direita para travar o imparável avanço afirmativo e inclusivo de um Brasil de todos e para todos que finalmente está nascendo. Acontecendo para cumprir o sonho de Abdias do Nascimento, Solano Trindade, Francisco Lucrécio e muitos outros gigantes assumidamente afro-brasileiros sem nunca terem abdicado de sua condição majoritária de verdadeiros brasileiros.

Como eles e como o anterior Dojival da geração que pegou seu testemunho de pensamento e ação se orgulhariam de Natália Santana Revi e Mariana Emiliano, autoras de assertivos e brilhantes textos de opinião em favor da afirmação afro-brasileira, respetivamente ''Ser afro no Brasil: exotismo despropositado ou afirmação identitária'' (30/01/2016- http://www.afropress.com/post.asp?id=18713) e ''Carta aberta a meu amigo Fernando Bustamante'' (13/02/2016 -http://www.afropress.com/post.asp?id=18788) ambos publicados na Afropress. Ambas se revelam a nova geração de negros e negras que o novo Dojival vê como formada em um "racialismo tosco" e não forjada na árdua e longa batalha pela afirmação identitária resgatadora de suas ancestralidades históricas e culturais, que em nada a aparta de sua condição de brasileira como identidade inquestionavelmente maior.

No artigo de uma desnecessária agressividade ao frei da Educafro, Dojival começa -  incredulamente para quem acompanha a sua combativa e muitas vezes solitária trajetória de luta, justamente pela afirmação da diferença no quadro da diversidade étnico-racial brasileira - por negar o sucesso das políticas de embranquecimento do séculos XIX e XX, bem evidente em todas as instâncias e escalões dos poderes político, econômico, militar, judicial e outros da sociedade brasileira. E, em linha com seu novo posicionamento, qualifica, no segundo parágrafo, de ''estúpida e nefasta'' a ideia de que o país se divide em negros e não negros a partir de indicadores socioeconômicos que colocam o primeiro grupo em desvantagem, realidade tantas vezes denunciada na Afropress e que agora vê, no parágrafo seguinte, como um ''reducionismo de botequim''.

Não é somente uma contradição de classe a causa da desvantagem dos não brancos, como agora vê e insiste em colocar, meu caro Dojival. É também uma contradição entre privilegiados pela cor, não por acaso uma maioria branca, e discriminados pela cor, não por acaso uma maioria negra, ou não branca, como se queira. A polícia quando faz uma blitz ou busca um suspeito de um crime, muitas vezes não atua guiada apenas por motivações de cumprimento do dever como  várias evidências demonstram.

Classe e, principalmente, cor também jogam a sua parte. Se fosse apenas por questão de classe, negros econômica e socialmente mais ou menos bem posicionados não sofreriam com  racismo. Januário Santana não seria brutalmente espancado no estacionamento de um hipermercado de São Paulo pela ousadia de ser dono de um modelo de automóvel tido como sofisticado demais para um preto. Se ouviriam clamorosos e cotidianos protestos contra assassinatos de jovens negros nas periferias das cidades brasileiras como se faz, e bem, quando um jovem branco é assassinado em um bairro de classe média. Não se silenciaria a verdade ao se dar como louco Paulo Sérgio Ferreira, um homem que em 13 de Abril de 2011 teve a coragem de escalar os 100 metros do Mastro da Bandeira, na praça dos Três Poderes, em Brasília, para atear fogo na bandeira e acusar o Brasil de ser uma "pátria assassina de negros".

Marx não estudou em profundidade as sociedades escravocratas e coloniais e o contexto do capitalismo industrial por ele teorizado já não é o mesmo. E, tal como os grandes vultos de referência nas ciências sociais e humanas, anteriores e posteriores ao seu tempo, Marx não foi exceção na forma como olhava os negros e a sua escravidão. Só para citar alguns exemplos, os grandes filósofos Kant, Hegel, Locke, o pensador política Alexis de Tocqueville, o sociólogo Max Weber, o historiador Oliveira Martins e o aclamado poeta Fernando Pessoa, todos tinham uma visão profundamente eurocêntrica e racista do mundo. Até Gandhi, o grande pacifista do século XX, ele mesmo vítima do racismo inglês, não escapou àquela linha de pensamento no seu olhar sobre os africanos. O próprio Dojival, em um trecho de um editorial com o título ''Os contras, os a favor e os "genéricos" (09/12/2007) diz, a respeito de Marx, o seguinte: ''Alguns chegam a invocar Marx para embrulhar, com palavras nobres, a fraude de que a questão racial no Brasil se resuma a uma questão de classe''.  

Não se trata de substituir uma questão central por outra, como agora contra-argumenta, no sentido de justificar o ressurgimento do fantasma do racialismo, desta feita com predomínio negro. Esse é um exercício que não faz sentido nenhum em uma sociedade tão miscigenada e já em si hierarquicamente racializada como a brasileira, onde o branca é a cor de todos os poderes. Trata-se sim de colocar, igualmente como central, um problema profundamente enraizado em sociedades pós-escravocratas onde impera a pigmentocracia, ou colorismo, conceito agora usado por novos autores para explicar a discriminação pela cor da pele e não necessariamente pela raça, como é o caso do racismo, sua raiz. 

Sociedades pós-escravocratas, particularmente as das Américas, são, para além de racistas, profundamente negrofóbicas, ou pretofóbicas, acentuando mais a tonalidade epidérmica do que na origem étnico-racial da pessoa como a variável determinante do preconceito, ou seja, a pessoa está sujeita a um maior índice de preconceito e discriminação quanto mais escura for a sua pele.  Nayara Justino, ex-Globeleza (2014) dispensada do cargo sem nenhuma justificativa a não ser pela suspeita do pecado da cor, "negra demais", é exemplo bem ilustrativo.

Não tenhamos ilusões. Apesar de muito se ter avançado na luta contra o racismo, mais em umas sociedades do que em outras, longo e penoso ainda é o caminho até ao dia em que não seremos julgados pela cor da nossa pele, mas sim pelo nosso carácter, como sonhou Martin Luther King Jr.  Vejo, portanto, como deliberadamente enganadora a carta fantasmagórica da racialização do Brasil que confunde ''empoderamento'' com ''empretecimento'' nas relações do poder. Com ela se pretende assustar os menos esclarecidos e manter o status quo vigente, como Dojival bem reconhecia no passado.

No editorial da Afropress intitulado ''Batalha pelo Estatuto pode barrar o neo-racismo'' (07/06/2007 - http://www.afropress.com/post.asp?id=13710) é dito: ''Quem inventou a ideia de que os seres humanos são divididos em raças, não fomos nós, os negros''. ''Ressuscitam o discurso da raça, racializando o debate, mas, para negar sua existência. Seu objetivo é evidente: justificar o descompromisso da sociedade e do Estado com as consequências do escravismo e do racismo contemporâneo, que explicam e expõem a desvantagem da população negra em todos os setores de atividade." Portanto, o Brasil sempre esteve ''empretecido", só que por baixo, nos escombros da maioria empobrecida que, não por acaso, é negra, ou não branca, como se quiser colocar.

O discurso de que ''somos todos raça humana'', se é verdade no domínio científico da biologia, definitivamente não o é no domínio sociológico onde o conceito de raça funciona como categoria social. Nesta esfera não se pode falar de racismo sem raças. É outro discurso enganador porque nem sempre é fiel ao principio biológico que nele se apoia e serve muitas vezes de carta em branco para continuação e perpetuação de políticas racistas excludentes, como antes reconhecia.

Quanto ao ser ou não ser afrodescendente, evidentemente que em tese todos o somos como humanidade, ou ''somos todos africanos'', como de repente se lembrou recentemente a atriz norte-americana, Meryl Streep, quando questionada sobre a controversa ausência de atores negros candidatos à ultima edição o prêmio Oscar. Acontece, porém, que a geografia fez com que uns se tornassem menos africanos que outros e a mercantilização da escravatura, na altura com benção do Vaticano, se encarregou de hierarquizar a espécie humana em raças ''superiores'' e ''inferiores'' e, assim, dezafricanizar ainda mais a humanidade.

Cansado da guerra, de heroísmos, todo o guerreiro tem o seu merecido tempo de descanso. Compreendo que esteja na fase. Só não entendo as razões para uma virada que pode significar o fim inglório do guerreiro e, com ele, o princípio do fim de uma trincheira midiática por ele criada e defendida com valentia merecedora de solidariedade e admiração para além das fronteiras do Brasil. 

- Em Afropress 22.02.2016

*Alberto Castro é correspondente de Afropress em Londres e colabora em Página Global

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