O
Hospital Pediátrico David Bernardino é mais um que tenta prestar apoio a um
número acima das suas capacidades. As consequências do caos em que se encontra
o sistema de saúde nacional estão na morgue.
Eram
três da tarde quando encontramos Jamila Dala com a sobrinha ao colo à
porta da sala de urgências do Hospital Pediátrico David Bernardino (HDB), em
Luanda. Aflita e pálida, o aspecto daquela criança de dois anos de
idade chamava a atenção de quem por ali passasse. A bebé, diagnosticada
com malária e à espera de uma doação de sangue, chegou ao hospital às 5h30
da manhã e ainda aguardava atendimento.
“Estou
há uma semana no vai e vem e não me atendem. Mandaram-nos fazer análise de
hemoglobina num outro local porque aqui não estavam a fazer. Trouxemos os
resultados, agora a médica de serviço diz que exames feitos fora daqui não
servem. A criança já está com uma hemoglobina abaixo de 6 [a media é em
gramas por decilitro de sangue, e estes valores normalmente indicam um
caso de anemia]. Não sabemos mais o que fazer”, lamentou a tia da criança.
Moradora
do bairro Camama 1, Jamila teve que ficar no lugar da irmã mais velha, que se
viu obrigada a regressar para casa devido ao cansaço pelas voltas dadas com a
criança ao colo e por se encontrar grávida. Segundo a tia, a criança já havia
sido diagnosticada com 20 parasitas por campo (a análise calcula a razão
de parasitas por campo microscópico analisado; cada 0,25 ml leva à análise 100
campos), foi dada como curada mas continua a sofrer com a doença.
Luana
André também aguardava pelas enfermeiras nas urgências. Devido à escassez
de camas, acompanhava o seu filho que se encontrava há 6 horas deitado no chão
frio daquela unidade e suplicava pela intervenção dos médicos, alegando que
apenas lhe foi aplicado soro e o quadro parecia piorar, temendo que o pior
acontecesse a qualquer instante.
Por
seu lado, Mariana, moradora do São Paulo, chegou às primeiras horas do dia ao
HDB vindo de outras clínicas com o seu filho ao colo ainda a arder em febre e
igualmente a precisar de sangue. “Já passamos pela Hospital Geral dos
Cajueiros e pelo Hospital Américo Boavida. Os bancos de sangue se
encontram vazios. Aqui as enfermeiras passam, olham para ele e apenas pedem
para aguardar. Já não sei o que fazer, estou a ver o meu filho a morrer nos
meus braços”, lacrimejava Mariana.
O
cenário nas urgências da maior unidade pediátrica do país é penoso. Durante a
nossa visita, de cerca de três horas, o Rede Angola pôde
observar quatro crianças a serem levadas para a morgue e o desespero das
mães que aos prantos acusavam os enfermeiros de “falta de amor ao próximo”.
Nas
camas do HDB constatamos a presença de até quatro doentes por cama, cada um com
um diagnóstico diferente. Cadeiras a servirem de camas, escassez de recursos
humanos, pacientes no chão, ar condicionado fora de manutenção, cheiro pouco
agradável e ainda a queixa de falta de alimentos para acudir as crianças
internadas.
Morgues
lotadas
A
directora clínica do HBD, Elisa Gomes, reconheceu a falta de capacidade para
atender a demanda e aponta o problema dos deficientes hospitais
localizados nas periferias da cidade de Luanda.
“Temos
tido nos últimos dias uma afluência em massa de crianças. Sabemos bem o que se
passa na rede periférica. Em média observamos 500 crianças por dia e internamos
mais de 100. O que os utentes nos dizem é que já foram a vários hospitais
e não encontraram médicos. Queríamos pedir às outras instituições, dos vários
municípios, que ajudassem a drenar um bocadinho os doentes que nós temos,
aqueles que podem ser seguidos nas instituições periféricas”, solicita
Elisa Gomes.
Segundo
a directora clínica, os pacientes vêm de todos os pontos da cidade, inclusive
de zonas onde existem hospitais municipais e o número de enfermeiros é muito
limitado, pelo facto de já há alguns anos não haverem concursos públicos.
Por
seu lado, Rodrigo João, chefe-adjunto da equipa do banco de urgência, confirma
que das 8h (de segunda-feira) às 8h (de terça-feira) registaram-se 31 óbitos.
Dos 530 pacientes observados foram internados 195 e 26 receberam altas.
O
responsável afirmou ao Rede Angola que das altas atribuídas, muitas
delas foram apressadas devido à necessidade de entrada de novos pacientes em
estado mais graves.
“A
situação é crítica. Após a alta fazemos o acompanhamento dos pacientes que vão
para casa e caso o quadro piore voltamos a interná-los”, explica.
Por
seu lado, os responsáveis da morgue do hospital pediátrico de Luanda lamentam o
facto de já não haver espaço para acomodar o elevado número de crianças que
estão a morrer de hora a hora no banco de urgência do HDB. A patologia mais
frequente é a malária e a anemia severa.
População
sensibiliza-se
Depois
do apoio do ministro da Saúde com camas e materiais gastáveis, ontem,
igualmente, o Hospital Pediátrico David Bernardino em Luanda recebeu a
visita da Associação dos Jovens Angolanos Provenientes da Zâmbia (Ajapraz) que
doou cerca de 20 mil seringas, soro fisiológico, luvas cirúrgicas, álcool,
fármacos diversos, água oxigenada, materiais gastáveis e leite.
“Pensamos
doar nas próximas 24h cerca de 3 toneladas de bens alimentares. Já contactamos
os nossos parceiros em Portugal e deve estar a chegar muito material gastável
no sábado, por avião”, afirmou Bento Raimundo, presidente da Ajapraz.
O
responsável que comprometeu-se em apoiar mais algumas unidades hospitalares da
periferia da cidade, de formas a mitigar a situação apelou ainda às pessoas de
boa-fé, principalmente aos empresários a darem a sua contribuição.
Já
o director administrativo do hospital pediátrico, Mário Correia Júnior, embora
reconheça o esforço que a sociedade civil vem fazendo no apoio ao HDB, apela
que o mesmo seja feito de maneira ordenada e não como tem estado a acontecer
pelas redes socais de uma forma que sugere até uma certa anarquia.
“Muito
do que é dito nem sequer é do nosso conhecimento, nem da nossa responsabilidade
e seria bom que fosse em coordenação connosco”, apela Mário Correia Júnior.
Das
necessidades mais gritantes no HDB, o responsável aponta para os materiais
gastáveis dado a afluência de pacientes mas não descura da necessidade de
recursos humanos para atender a massa populacional que ali se dirige à procura
de atendimento.
O
recém-nomeado ministro da Saúde, Luís Gomes Sambo, em seis dias de mandato já
visitou por duas vezes aquela unidade hospitalar e orientou, entre outros, que
se fizessem reforços do número de camas. O hospital recebeu, ontem, mais de 30
camas, material gastável e medicamentos.
“Sobre
o número de pacientes por cama, de uma forma geral há um rácio entre doentes e
o número de técnicos. São rácios internacionalmente aceites para uma prestação
com o mínimo de qualidade, quando este rácio é superado no sentido de haver
muito mais doente do que gente a atender além do tempo de espera enorme, a qualidade
do atendimento também não pode ser das melhores”, explica o director
administrativo do hospital pediátrico, Mário Correia Júnior.
Waldney
Oliveira – Rede Angola – Foto: Ampe Rogério
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