O
Tribunal Constitucional, numa decisão cristalina, decidiu que as medidas de
coacção aplicadas à jovem Lídia Amões tinham excedido largamente o prazo de
duração e que por isso estavam extintas. Os argumentos oferecidos como
justificação são em si mesmos um hino à liberdade como direito fundamental.
Por
Rui Verde*
Adecisão
do Tribunal Constitucional estava muito bem escrita, em português claro,
objectivo e sem dar azo a dúvidas. No entanto, num exercício incompreensível em
termos de Direito, o juiz da 8.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal
Provincial de Luanda mandou-a prender e ao irmão, depois de conhecida a decisão
do Tribunal Constitucional.
Infelizmente,
o irmão, Azeres Amões, suicidou-se no passado dia 16 de Março. Por isso já não
pode ser preso. Tudo indica não ter aguentado a perseguição judicial ilegal,
optando pelo suicídio.
Melhor
teria procedido o juiz se tivesse já revogado essa ordem de captura de um
morto, antes de a mesma sair do Tribunal. O advogado do morto só foi notificado
a 23 de Março. O conhecimento do modo de funcionamento interno do expediente de
um Tribunal comum sugere que teria sido possível parar essa ordem surreal.
Maka
Angola soube de fonte segura que o juiz terá sido aconselhado a alterar a
decisão, uma vez que a morte de Azeres, foi bastante noticiada, tornando-se
pública e notória, e por uma questão de bom senso não ficaria bem notificá-lo
uma semana após a sua morte.
Quanto
a Lídia, o despacho que ordena a captura contraria uma decisão do Tribunal mais
importante do país. E contraria expressamente. Não pode um juiz aplicar uma
medida de coacção privativa de liberdade a uma pessoa a quem o Tribunal
Constitucional já considerou estar a ser vítima de uma medida de coacção ilegal
por ter passado o prazo há muito tempo.
Se
em 17 de Fevereiro de 2016 já tinha passado o prazo há muito tempo, então
quando foi notificada a 23 de Março de 2016, mais tempo ainda teria passado.
Não é o facto de haver acusação e pronúncia neste caso que altera a longa
passagem do tempo.
E
como se isso não bastasse, além de contrariar expressamente uma decisão de um
tribunal superior, o despacho judicial incorre num erro crasso de interpretação
jurídica. Pretende aplicar ao caso as normas processuais penais que proíbem a
chamada “Liberdade provisória”.
Desde
logo o despacho que ordena a prisão é nulo, porque não fundamenta de Direito as
normas em que se baseia, nem cumpre mais nenhum dos requisitos do artigo 21.º
da Lei das Medidas Cautelares. Talvez a norma a que eventualmente o juiz faça
referência seja o artigo 10.º, n.º 2 da Lei 18-A/92 de 17 de Julho.
Mas
aqui temos um problema: essa Lei foi revogada pelo artigo 52.º da nova Lei das
Medidas Cautelares em Processo Penal (Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro).
Se,
porventura, se tratar de outra norma, a realidade é que todas as normas que
contradigam a Lei das Medidas Cautelares foram revogadas. E esta lei é muito
clara em estabelecer o princípio da extinção das medidas de coacção por decurso
do tempo (artigo 24.º, n.º 1, a)) bem como o princípio da unicidade dos prazos
legais (artigo 23.º,n.º 2 in fine). Além de afastar qualquer automatismo na
determinação de prisão preventiva (artigos 18.º. 19.º e 40.º, n.º 2 da Lei das
Medidas Cautelares). Logo, não existe norma em vigor que permita a prisão nos
termos expostos.
O
juiz está a aplicar uma lei revogada, que não existe. É tudo nulo.
É
incrível! Sem argumentos legais, o juiz, para ordenar a captura de Lídia e do
irmão, alegou ainda que existiria receio de fuga e de perturbação da instrução
do processo, sem especificar que factos justificam o receio de fuga e como
Lídia poderia perturbar um processo cuja instrução já foi concluído e está à
margem da Lei (pois durou aproximadamente três anos).
Face
a isto, não vale a pena falar na substância da pronúncia. No entanto, e em todo
o caso, aqui ficam umas breves notas: Não se percebe, da leitura da pronúncia,
a ligação entre os factos e os tipos criminais. Esta é um arrazoado de factos
sem estar estabelecido qualquer nexo causal, nem enquadramento típico.
No
que respeita à teoria da comparticipação criminal, não se percebe como surgem
tantos factos ligados a actividades do então Banco Espírito Santo Angola
(BESA), actual Banco Económico.
Lídia
Amões é acusada de ter obtido ilicitamente e ter dado destino incerto a
créditos de mais de US $100 milhões, sem estar constituído qualquer arguido
neste Banco, nem o mesmo aparecer como queixoso.
Lídia
Amões dirige-se esta segunda-feira, às 10h00, depois da consulta do seu filho
de 4 meses, ao Tribunal Provincial de Luanda para ser, então, conduzida aos
calabouços, para onde foi mandada por um Despacho inconstitucional, ilegal e
nulo.
“Mesmo
que encontre a morte na referida cadeia só assim poderei questionar o que o meu
pai Valentim Amões fez, enquanto vivo, para que eu seja perseguida com tantos
atropelos à lei por ser herdeira e ter sido cabeça-de-casal”, disse a ré.
* Doutor em Direito - Maka Angola – em Folha 8
Sem comentários:
Enviar um comentário