segunda-feira, 7 de março de 2016

O SULTANATO



Rui Peralta, Luanda

Os analistas políticos turcos (mesmo os pró-governamentais) concordam que a política externa do país sob o governo do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) é uma manta de retalhos. Segundo a opinião maioritária, isso é causado pelo abandono da política externa laica que dominou desde Ataturk – o fundador e modernizador da Republica Turca – e respectiva substituição por uma política externa islamizada. Esta alteração de posicionamento reduz as opções, principalmente num momento turbulento que atravessa toda a região Euroasiática. A Turquia encontra-se numa situação de isolamento e incapaz de influenciar, a nível regional, os acontecimentos, mesmo os que têm sérios impactos negativos nos seus interesses.

A política externa desenhada por Mustafá Kemal Ataturk era baseada no princípio “Paz em casa, Paz no mundo”, que obrigava a Turquia a ter uma visão geopolítica bem estruturada, que harmonizava-se com a política de desenvolvimento e de modernização. Com o AKP, com a sua ideologia assente na premissa da “visão nacional”, alicerçada numa concepção islâmica sunita, na linha política da Irmandade Muçulmana, os princípios orientadores geopolíticos e geoestratégicos turcos foram alterados. De uma geopolítica cuidadosa e defensiva, o AKP passa, com o crescimento económico, a uma política de relacionamentos instáveis com os vizinhos e com os outros poderes regionais.

O AKP iniciou uma política externa idealista, durante o governo de Ahmet Davutoglu, que foi ministro das relações exteriores de 2009 a 2014. Partindo do principio de que a Turquia era o principal “player” na região e que, nesse papel, poderia rearranjar os acordos estabelecidos e assumir o controlo regional, o governo do AKP esqueceu-se da “realpolitik” e do lugar geopolítico da Turquia. Em política externa não existem amizades eternas nem eternas inimizades e, muito menos, interesses eternos. E erros após erros, os turcos ficaram atolados em pântanos, assistindo ao apodrecimento das suas relações com Israel, Egipto e Síria e ao agravamento das suas conturbadas relações com a Rússia. Além destes desaires as relações com a Europa tornaram-se, no mínimo, catastróficas e mesmo com os USA as relações são de desconforto. O AKP afastou a Turquia do Ocidente, falhou o compromisso de Shangai, no âmbito dos acordos de Cooperação e deixou o país isolado e atolado. Tenta o retorno ao chapéu-de-chuva do Ocidente, mas essa é apenas, hoje, uma tentativa, nada mais.

A concepção de que a Turquia é o líder regional sunita ganhou um novo impulso com o Presidente Recep Tayyip Erdogan, que mergulhou o país no isolamento. A política externa requer uma visão clara e objectiva da realidade, não emocional e não doutrinária. Com Erdogan acontece o contrário. A Turquia mergulha nos problemas regionais, toma posições por um dos lados em conflito e resume a sua actuação a uma posição doutrinária. Erdogan esquece-se que erros estratégicos não podem ser corrigidos por movimentos tácticos.

Os erros de Ancara são de diversa ordem e a Turquia mergulha numa situação de guerra declarada, a nível interno e externo. O conflito sírio é um exemplo de como está atolada a manta de retalhos externa turca.

As forças governamentais sírias, apoiadas pelas forças russas, tentam controlar as vias de abastecimento entre a Turquia e a cidade de Alepo. Entre os aliados das forças governamentais sírias encontram-se as Unidade de Protecção das Populações Curdas (YPG), que desempenham um papel importante no controlo da fronteira turca/síria. Ora, Ancara, declarou o YPG como organização terrorista, devido á sua ligação com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). O governo turco quer evitar a expansão do PKK em Afrin, um cantão curdo, localizado a noroeste de Alepo com receios que os curdos utilizem esta zona como base para as suas actividades na Turquia.

O YPG, recentemente, avançou para Este, em direcção á cidade de Azaz, o que levou o 1º ministro turco Ahnet Davutoglu a declarar que a Turquia não permitira o controlo de Azaz pelos curdos. Estas declarações não evitaram que o YPG capturasse a cidade de Tell Rifaat, a poucos quilómetros de Azaz, com o apoio da Força Aérea russa. Por outro lado, no âmbito das Forças Democráticas Sírias (SDF, opostas ao governo sírio, mas aliadas no combate ao Califado), o YPG cercou a cidade de Marea e prosseguiu o seu avanço pela zona fronteiriça. O YPG que em Junho passado, com o suporte aéreo das forças norte-americanas, libertou Tell Abyad, cidade que estava ocupada pelo Estado Islâmico (ISIL), avança agora em toda a região fronteiriça com o suporte russo, o que assusta o governo turco.

Com o cerco a Marea o YPG exerce controlo sobre estradas fundamentais na ligação á fronteira e exerce pressão a Este e a Oeste de Raqqa, controlada pelo ISIL. Esta manobra permitiu-lhe o apoio russo e norte-americano, situação ainda mais preocupante para o governo turco e é fácil de perceber as dores de cabeça dos governantes turcos. Com o suporte aéreo russo, o YPG, pode expandir a sua presença no cantão de Afrin, criando um corredor entre este cantão e os cantões curdos de Kobani e Jazeera, corredor que isolará a área sunita da Síria, impedindo-a de ligar-se á fronteira turca. Este cenário é um pesadelo para todo o bloco sunita, composto pela Turquia e pelos Estados do Golfo. Por sua vez com o suporte aéreo norte-americano o YPG ataca Raqqa, a capital do ISIS, integrado no eixo oposicionista sírio reunido em torno do SDF.

O YPG pode, assim, gerir os seus relacionamentos com russos e norte-americanos e ter um papel decisivo na busca de entendimentos que levem a um acordo que permita resolver o problema sírio. E isto também não agrada a Ancara, uma vez que o protagonismo curdo na Síria e no Iraque representa um aumento das revindicações dos curdos da Turquia. Mas o protagonismo curdo representa, também, uma perda de oportunismo turco. Ancara quer liderar as forças sunitas sírias e criar uma força aérea sunita de combate ao ISIS, cujo centro de formação é em Konya e que conta com seis F-15 sauditas e com instrutores turcos. Este treino inclui operações de coordenação com forças terrestres. A todo o momento esperam-se mais vinte F-15 fornecidos pela Arábia Saudita, e que serão enviados para a base aérea de Incirlik, onde são aguardados aviões de combate do Qatar.

Esta força sunita conjunta, suportada pela Turquia, Arábia Saudita e Qatar pretende levar a cabo operações na Síria e aguarda autorização norte-americana para participar nos bombardeamentos aos bastiões do ISIL, como Raqqa e Deir-ez-Zor. Mas esta autorização pode ser demorada ou nunca chegar a acontecer, pois esta força aérea sunita representa para os USA um “plano B” nas suas negociações estratégicas com a Rússia e não pretendem, para já, abrir os portões para a acção saudita e turca na Síria.

Outro instrumento utilizado pela Turquia para influenciar o seu papel na Síria são os 155 morteiros de longo alcance que estão espalhados na sua fronteira, em torno de Kilis. Com estes morteiros os turcos podem atingir facilmente Azaz e Marea, que distam cerca de 10 milhas da fronteira. Por outro lado as forças armadas turcas estão a concentrar artilharia pesada ao longo da fronteira, na área controlada pelo Partido Democrata Unido Curdo (PYD) em Kobani, Teel Abyad e Qamishli. Esta concentração de equipamento permite á artilharia turca cobrir mais de 25 milhas no interior do território sírio. Este plano encontra-se, no entanto, suspenso, devido às chamadas de atenção por parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas (embora não seja, ainda, uma resolução da ONU).

Um segundo factor que pode levar Ancara a atolar-se completamente nos campos de batalha sírios é a tese do “Novo Afeganistão russo”, concepção que é partilhada com a Arábia Saudita e que nasceu entre as facções sunitas radicais da oposição síria. Esta tese é alicerçada na entrega imediata de misseis Sting e SA-7 portáteis, de curto-alcance, misseis terra-ar antiaéreos portáteis (conhecido por MANPADS, iniciais de Man-Portable Air Defense Systems), á semelhança do que acontecia com os combatentes anti-soviéticos no Afeganistão. Isso implicaria o abate de aviões e helicópteros russos, impedindo a força aérea russa e síria de controlarem o espaço aéreo sírio. Para turcos e sauditas esta era, também, a forma de eliminar a pressão russa e governamental síria sobre Alepo.

Enquanto a situação síria desenvolve-se, Ancara manifesta impreparação. O governo turco utiliza o conflito sírio para consumo interno e a sua máquina de propaganda tenta criar uma imagem de vitória, passada ao eleitorado. Recusando-se a analisar de forma realista o contexto sírio, a política externa turca esconde-se numa capa doutrinária profundamente demagógica e que pode conduzir a Turquia a uma interminável guerra com a Síria, Irão e a Rússia, enquanto internamente, se desenvolvem condições para um conflito interno de grande intensidade com as comunidades curdas que habitam na Turquia e com outras minorias.

Ao considerar a Síria e os curdos como ameaças á sua existência, Ancara faz parte do problema e não da solução. A sua crescente cooperação com a Arábia Saudita e o seu envolvimento na criação de um “bloco sunita” são factores de forte tensão em toda a região. Não faltará muito para os povos da região terem mais um inimigo: além do fascismo do Califado, começam já a equacionar um eventual sultanato…

Fontes
Idiz Semih  What happened to Turkey's foreign policy? http://www.al-monitor.com
Idiz Semih  Turkey, 2016: foreign policy prospects not promising http://www.al-monitor.com
Idiz, Semih  Turkey ups the ante in Syria http://www.al-monitor.com
Karakaya, Kerim Turkey economic success dramatically changed http://www.al-monitor.com
Cetingulec, Mehmet Turkey/Iran: trade deal prove huge disappointment http://www.al-monitor.com
Gurcan, Metin  Turkey/Syria: new threats opportunities to Ankara http://www.al-monitor.com
Gurcan, Metin  Will Turkey, Russia fan flames into an inferno? http://www.al-monitor.com
Taştekin, Fehim Turkey/Syria: hopeless azaz battle http://www.al-monitor.com
Mert, Nuray Turkeys difficult times http://www.hurriyetdailynews.com

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