Jorge
Sampaio – Público, opinião
Costuma
dizer-se que a memória é selectiva e que os relatos históricos são
reconstruções narrativas, que não dispensam nem uma parte de interpretação nem
alguma subjectividade. Até poderá ser assim, mas as chamadas fontes em história
permitem colmatar lacunas e reconstituir factos passados. Posto isto, inspirado
pela leitura dos semanários de fim de semana, atrevo-me a fazer uma breve
revisitação dos anos 2002-2003 deste século, determinantes que foram para o
caos que hoje se vive no plano internacional. Refiro-me ao Iraque.
Sendo
certo que já em 2001 estava na agenda internacional, e sobremaneira na
americana, em Portugal, a questão do Iraque só emerge no quadro dos contactos
que então mantinha com o primeiro-ministro no início de Setembro de 2002.
Lembro-me, concretamente, de uma extensa conversa telefónica sobre a matéria, a
9 de Setembro, aquando do seu regresso de um encontro na Sardenha, com
congéneres europeus, durante o qual se teria desenhado com maior clareza a
possibilidade, apoiada por ingleses, espanhóis e italianos, de uma intervenção
no Iraque, mesmo sem mandato das Nações Unidas.
Recordo
bem esta conversa não só por ter marcado a introdução da questão do Iraque na
agenda interna, de que passou a ser um ponto recorrente, como por ter revelado ab
ovo [de início] as diferenças de posição entre mim e o chefe do
executivo. Este, para além de então ter esgrimido o argumento do interesse
nacional, que seria o de preservar o elo atlântico no contexto europeu,
mencionou ainda que lhe custaria ver certos países do lado dos EUA e Portugal
com uma posição diferente – pensando porventura em Espanha –, não sem que, a
rematar, me tivesse lembrado que cabia ao governo a condução da política
externa, um preceito constitucional que me não ocorreria desrespeitar, mas que
me não impedia de emitir opiniões, um direito que a Constituição igualmente
reconhece ao Presidente.
A
convicção certa, com que então ficara, de que o Iraque se viria a tornar num
factor de polarização PR versus PM, foi-se adensando e tornou-se evidente no
nosso encontro semanal de 19 desse mês, depois de uma intervenção do
primeiro-ministro no Parlamento. Mas, para mim, não era menos premente a
necessidade de gerir
esta divergência de forma adequada, sem a tornar num factor de
vulnerabilização do funcionamento regular das nossas instituições.
O
último trimestre de 2002 foi marcado pelo peso crescente da questão do Iraque,
quer no plano internacional – fosse das Nações Unidas, em que se deve destacar
a aprovação da Resolução 1441 de 8 Novembro ou da NATO, tendo-se realizado a
Cimeira de Praga nessa altura –, quer no europeu, com declarações recorrentes
no âmbito dos Conselhos de assuntos gerais e das relações externas, reiterando
o apoio ao teor da Resolução 1441 e o apelo ao “desarmamento do Iraque no que
respeita às armas de destruição maciça”.
No
entanto, a verdade é que a unanimidade que parecia subjazer a estas
declarações, foi-se estiolando à medida que nos bastidores se intensificaram os
indícios de que haveria uma iniciativa militar em preparação. Dentro desta
lógica, a procura pelos EUA de apoios levou a uma clara polarização entre os
parceiros europeus, de resto ao arrepio das opiniões públicas europeias que
manifestaram uma rara unanimidade contra um conflito armado.
A
divisão europeia tornou-se óbvia com, por um lado, a tomada de posição conjunta
de Chirac e Schröder (22 de Janeiro de 2003) sobre a oposição a qualquer acção
militar sobre o regime iraquiano e a chamada “carta dos Oito”, publicada a 30
de Janeiro, que, na véspera, o primeiro-ministro me informara ir assinar,
embora sem me mostrar o texto, mas que enquadrou com argumentos semelhantes aos
que viria a expender no Parlamento a 31 de Janeiro – ou seja, basicamente que
para Portugal a neutralidade não era opção. Entre Fevereiro e Março desse ano,
convoquei o Conselho de Estado por duas vezes e todas as intervenções públicas
que fiz, designadamente na Declaração ao país a 19 de Março, já depois da
Cimeira das Lajes, deixei sempre clara a importância de preservar o papel do
multilateralismo na construção da paz e na resolução dos conflitos, bem como o
da desejável unidade e autonomia europeias em matéria de política externa.
Sobre
a Cimeira em si, e o processo que levou à sua realização nas Lajes – e não em
Washington, Londres, Barbados e Bermudas, como terá sido ventilado –, a verdade
é que a literatura internacional lhe dá pouca ou nenhuma importância e não
tendo eu tido conhecimento dos preparativos, pouco posso dizer. No entanto,
quero recordar aqui o telefonema que, pelas 7 da manhã de 14 de Março, recebi
do primeiro-ministro, solicitando-me uma reunião de urgência. Para minha
estupefacção, tratava-se de me informar que havia sido consultado sobre a
realização de uma cimeira nos Açores, essa mesma que, nesse mesmo dia, a Casa
Branca viria a anunciar para 16 de Março, daí a pouco mais de 48 horas… Não é
preciso ser-se perito em relações internacionais para se perceber que eventos
deste tipo não se organizam num abrir e fechar de olhos; e também não é
necessário ser-se constitucionalista, para se perceber que não cabe ao
Presidente autorizar ou deixar de autorizar actos de política externa.
De
qualquer forma, transmiti claramente que tratando-se, como o meu interlocutor
afiançava, de uma derradeira e essencial tentativa para a paz e evitar a guerra
no Iraque nada teria a opor. Em relação a tudo isto, muito mais poderia
recordar, para além da fotografia conhecida que registou um dos momentos mais
gravosos deste século, quer seja sobre o papel de Portugal na dita Cimeira,
sobre as conclusões da mesma ou ainda sobre tudo o que se seguiu e o início da
guerra. Por falta de espaço, não o farei aqui hoje, mas, poderá o leitor
interessado por esta questão recorrer ao trabalho sério de Bernardo Pires de
Lima, A Cimeira das Lajes (2013), cuja leitura vivamente recomendo.
À
laia de conclusão, quero sublinhar três pontos: o presidente tem o direito
constitucional a mostrar a sua discordância perante a condução da política
externa e não está obrigado a acatar, sem intervenção e passivamente, decisões
assumidas pelo Governo; no caso que aqui nos ocupa, entendo ter conseguido uma
posição equilibrada pois, por um lado, evitei de facto abrir um conflito
institucional que em nada serviria o país, mas, por outro, ao me opor ao envio
de tropas para o Iraque, afirmei decisivamente o papel efectivo do presidente
como comandante supremo das Forças Armadas; quanto ao mais, quero reafirmar um princípio
de natureza geral, é que na política como na vida, importam tanto os resultados
como os processos, pelo que a estratégia dos factos consumados contribuem pouco
para reforçar a confiança mútua que é o cimento dos laços sociais e do funcionamento
das instituições em democracia.
*Presidente
da República, 1996-2006
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