“Se
houvesse um inquérito no qual todos os escravos pudessem depor livremente,
todos os brasileiros haveriam de horrorizar-se ao ver o fundo de barbárie que
existe em nosso país debaixo da camada superficial de civilização, onde quer
que essa camada esteja sobreposta à propriedade do homem pelo homem”. Joaquim
Nabuco (1849-1910).
No
transcorrer do século XV, a expansão de Portugal, ao longo da costa africana,
favoreceu, com o aval de bulas papais, o tráfico negreiro. Totalizando
1.552.000 escravizados, trazidos nos tumbeiros ou navios negreiros, a América
espanhola perde em índice numérico para o Brasil que, segundo estudos recentes na
Universidade de Emory, em Atlanta, atingiu o total de 4,8 milhões de
escravizados.
O
número inferior de escravizados negros, na América espanhola, justifica-se pelo
fato de que o nativo conhecia técnicas de mineração e já havia sido subjugado
pelos espanhóis em suas conquistas neste continente. Além disso, a taxa de
mortalidade nas minas, em virtude da insalubridade, era grande e repor
constantemente esta mão de obra com a compra, por meio do tráfico negreiro,
significava investimento financeiro.
Escravidão
na América
A
utilização de escravizados negros, nas minas, fazia-se necessária em lugares
onde não havia nativos à mão, a exemplo de Nova Granada, atualmente Colômbia,
ou quando estes já haviam sido exterminados. Nas minas de prata de Potosi, por
exemplo, ocorreu um verdadeiro morticínio, gerando preocupação, por parte da
Coroa espanhola, e a ideia de utilizar - no lugar dos nativos-, escravizados
africanos. Diante do alto custo monetário para comprá-los, por meio do tráfico
negreiro, os castigos e maus-tratos poderiam diminuir por parte dos
exploradores das minas. Acreditava-se que os senhores passariam a valorizar
a mão de obra do escravizado, evitando, assim, o prejuízo financeiro com a
morte devido a excessos físicos e a punições. Ao contrário de Portugal, a Coroa
espanhola, para legitimar a presença de traficantes de escravizados, expedia o Asiento.
Este documento permitia o tráfico negreiro que era realizado, por alguns homens
específicos, num período preestabelecido.
No
Brasil e na América Hispânica, a mão de obra africana foi utilizada
principalmente na lavoura de exportação dentro do sistema de plantation. O
dinheiro gasto na compra do escravizado antes que este produzisse, gerando
lucro, levou o colono a explorar a mão de obra escrava até a completa exaustão.
Esta era a forma de resgatar, num curto período, o valor pago pela mercadoria
(o escravizado).
No
sistema espanhol, o trabalho servil nos latifúndios agroexportadores - chamado
de encomienda -, os nativos distribuídos, pela coroa, na condição de
escravizados, eram forçados a se converterem a fé católica, e a Casa de
Contratação era a responsável por arrecadar e fiscalizar os impostos. Visando a
diminuir o contrabando do ouro, o sistema criou portos que controlavam, em suas
colônias, a entrada e a saída de produtos da América. Os descendentes de
espanhóis, que nasciam na América, eram chamados de criollos. Estes possuíam
médias e grandes propriedades e atuavam no comércio. Os chapetones faziam parte
do ápice da pirâmide social. Ocupando os cargos mais importantes, esta elite
era composta pelos grandes proprietários.
A
mão de obra escrava
O
senhor de escravo também obtinha lucro financeiro, por meio de
escravos-de-ganho que trabalhavam para terceiros, sendo que o pagamento era
embolsado pelo seu senhor. Às vezes, num ato de generosidade do proprietário, o
escravizado recebia um percentual do dinheiro ganho com seu trabalho. Os
escravizados, que trabalhavam direto na produção, tinham uma vida bastante
difícil e marcada por castigos bastante cruéis, quando não correspondiam às
expectativas de produção dos senhores ou em caso de tentativa de fuga. Já os
destinados à vida doméstica, em relação aos irmãos de etnia, recebiam um
tratamento menos cruel e eram símbolos de status social para o proprietário.
A
utilização do braço escravizado, ao longo do tempo, foi gerando uma estagnação
da força produtiva. Os senhores não vinham razões e necessidade de investir em
tecnologia, visando a poupar esforços num trabalho desvalorizado e aviltado. Na
visão do sistema escravocrata, bastava aumentar a mão de obra escrava, para que
houvesse um aumento natural na produção.
A
diáspora negra
As
maiores concentrações de escravizados ocorreram nas seguintes regiões: Caribe,
América Central, norte da América do Sul, litoral nordestino, litoral do
Sudeste e o interior de Minas Gerais. Nos engenhos de açúcar, em Cuba, os senhores
permitiram que os escravizados tivessem locais próprios para o plantio, visando
a sua subsistência, desde que isto não atrapalhasse outras atividades de rotina
desenvolvidas com fins lucrativos. Em São Domingos, os negros também
trabalharam na criação do gado. No Brasil a mão de obra negra foi explorada por
quatro séculos, sendo o sustentáculo da nossa produção econômica,
principalmente, no Ciclo do Açúcar, do Ouro e do Café.
A
passividade do escravizado, diante da sua condição, constitui-se num mito.
Havia várias formas de resistência à escravidão, como a fuga para os quilombos,
o assassinato do seu senhor e o aborto dos nascituros. Esta última forma,
somada ao fato de chegarem mais escravizados do sexo masculino que mulheres,
justifica o baixo índice de reprodução e nascimentos de negros nas colônias
ibéricas. Já nas colônias inglesas da Virgínia e Carolina do Sul havia
verdadeiros criadores de escravos que se encarregavam da tarefa de reposição de
futura mão de obra.
O
tráfico negreiro se constituiu numa das modalidades da acumulação primitiva de
capital. A entrada de produtos a baixo custo na Europa, como açúcar, chá,
cacau, tabaco, café, algodão, entre outros, serviu aos interesses ao incipiente
capitalismo manufatureiro. O tráfico negreiro se assentava na mecânica do
comércio triangular: Europa, África e América. Quanto maior o número de
escravizados- adquiridos a baixo custo na África -, os plantadores na América
comprassem, melhor era a condição dos comerciantes em obterem os produtos
tropicais e revendê-los no Velho Mundo. Isto justifica a preferência pela mão
de obra negra à escravidão indígena na lavoura brasileira. Outros historiadores
acrescentam que os nativos do litoral brasileiro foram exterminados durante o
século XVI, e isto resultou na substituição desta mão de obra servil, pela
força do escravizado africano, a partir do século XVII, de forma intensa. Já em
1441, Portugal havia capturado os primeiros escravizados na África.
Importante
salientar que o tráfico negreiro pagava imposto ao governo português, no
Continente Africano, ao sair e quando atracavam os tumbeiros (embarcações) em
solo brasileiro. O tráfico no Atlântico foi responsável pela entrada de cerca
de 9.500.000 africanos nas Américas. No Brasil, o tráfico negreiro representou
38% de todo o comércio de escravizados entre África e as duas Américas.
Embora
a existência de leis, que foram criadas para combatê-lo, a exemplo das leis de
1831 e de 1850, havia, infelizmente, uma cumplicidade das autoridades
brasileiras, inventando-se todo o tipo de subterfúgios para escapar a pressão
inglesa. A Inglaterra, após liderar o tráfico negreiro, por muitos anos, passou
a combatê-lo devido a interesses econômicos em busca de mercado consumidor.
Além disso, necessitava de mão de obra, em suas colônias na África, visando à
produção e o fornecimento de matéria prima para o seu parque industrial.
No
caso das expedições de caça e venda de indígenas, estas não pagavam tributos a
Coroa de Portugal, ou seja, não interessava aos lusitanos as instabilidades
geradas por fugas e guerras contra índios, numa região vulnerável a invasões
como era o nosso litoral. O nativo, conhecedor da mata, fugia das mãos do
colonizador, adentrando, com facilidade, em regiões de difícil acesso e
inóspitas.
A
resistência contra a escravidão
A
história registra a inconformidade dos oprimidos contra o sistema opressor e
escravocrata, No caso da exploração do nativo, houve uma revolta, em 1712, no
sul do México; e também no Peru eclodiram no período de 1743 a 1750 e 1781.
Ainda no contexto da América espanhola, os escravizados africanos se
organizavam em palenques que se constituíam em redutos de negros fugidos,
equivalendo-se ao que conhecemos como quilombos, a exemplo da Colômbia (1750 -1790)
e da Venezuela (1795).
O
Haiti, sob a dominação francesa, vivenciou uma revolução sangrenta (1791-1804),
que colocou no poder líderes negros. Após um ano, realizada a
independência, instalou-se uma monarquia e depois se instituiu uma república
dirigida por ex-escravos. A Revolução Haitiana é considerada um marco na
história dos africanos nas Américas.
No
caso da América portuguesa, no Brasil, o Quilombo dos Palmares (1630-1695)
ficou famoso. Resistindo aos ataques e emboscadas de expedições militares, este
quilombo se destacou devido à sua organização político-social e pela força do
seu líder Zumbi (1655-1695), cujo nome nos remete ao “Dia da Consciência
Negra“, comemorado, em 20 de novembro, em alusão ao dia da morte desse líder.
Oficialmente instituído, em âmbito nacional, mediante a lei nº 12.519 de 10
/11/ 2011, a data foi reconhecida devido à mobilização do Movimento Negro e da
liderança do ativista gaúcho e professor Oliveira Silveira (1941-2009) que teve
a iniciativa de propor o reconhecimento da figura de Zumbi, como símbolo de
resistência e luta dos afrodescendentes no Brasil.
Historiadores,
no início da década de 1970, descobriram a data da morte de Zumbi dos Palmares,
motivando o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um
congresso, que se realizou, em 1978, ainda no período da Ditadura Militar
(1964-1985), a eleger a figura do líder Zumbi, como um ícone da luta e da
resistência dos negros escravizados, assim como da luta por direitos que os
afrodescendentes reivindicam no Brasil.
Um
olhar crítico sobre o Dia da Consciência Negra
Embora
a data de 20 de novembro enfatize a ideia de liberdade e resistência do
Quilombo dos Palmares, por meio de seu líder Zumbi, o historiador José Murilo
de Carvalho destaca que grandes quilombos, a exemplo de Palmares, participaram
do tráfico e do uso de escravos. Em sua obra “Cidadania no Brasil’, ele
registra:
“Os
quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo relações com a sociedade
que os cercava, e esta sociedade era escravista. No próprio quilombo dos
Palmares havia escravos”. (CARVALHO, 2002, p. 48).
O
Quilombo dos Palmares era constituído por quilombolas (escravizados fugitivos
que viviam nos quilombos). Estes, em sua grande maioria, eram mão de obra
escrava em fazendas das capitanias da Bahia e Pernambuco. O Quilombo dos
Palmares era formado por vários mocambos (núcleos de povoamento), sendo os
principais: Subupira, Macaco e Zumbi. Localizado na Serra da Barriga,
atualmente a região pertence ao estado de Alagoas. Segundo os historiadores, o
Quilombo de Palmares atingiu uma população de 15 a 20 mil quilombolas na segunda
metade do século XVII. Este quilombo foi dominado, em 1695, após sofrer uma
investida militar do bandeirante Domingos Jorge Velho (1641-1705). No dia 20 de
novembro, daquele ano, o líder Zumbi foi emboscado e morto.
Um
verdadeiro genocídio
O
degradante sistema escravocrata foi responsável pela morte, por meio do
esgotamento físico e de maus tratos, de milhares de indígenas e negros. O
binômio, composto por perversidade e desumanidade, caminhou lado a lado com a
irracionalidade e o desperdício dos senhores de escravos. A caminho do Rio de
Janeiro, que era a porta principal de entrada de navios negreiros (tumbeiros),
300 mil morreram, tendo o mar como sepultura.
Com
a Revolução industrial, a partir da Inglaterra, no século XVIII, o tráfico
negreiro passou a ser condenado pelo governo inglês, e mudaram-se as relações
de trabalho e produção, determinando os derradeiros dias do sistema escravocrata.
O Brasil, em 13 de maio de 1888, foi o último país das Américas a abolir a
escravidão, sendo, naquele momento, também a única monarquia num contexto de
países republicanos. Um ano depois, em 15 de novembro de 1889, foi proclamada a
República no Brasil, e o imperador D. Pedro II (1825-1891) partiu para o seu
exílio na Europa. O experiente monarquista João Maurício Wanderley (1815-1889),
o Barão de Cotegipe, após a sanção da Lei Áurea (1888), fez a sábia análise
daquele importante momento político: "Vossa alteza libertou uma raça, mas
perdeu o trono".
Uma
abolição inconclusa
Infelizmente,
após a Abolição da Escravatura, essa imensa população de libertos se deparou
com uma dura realidade marcada por fatores, como a pobreza, a falta de
instrução, o preconceito racial e a invisibilidade social. O processo ocorreu
sem que houvesse um projeto efetivo de inclusão social. A liberdade foi
concedida, mas a conquista do passaporte da cidadania plena exige, ainda, nos
dias atuais, intensa luta contra o preconceito racial e uma atuante resistência
cultural por parte dos afrodescendentes, visando ao respeito diante da
contribuição que tiveram na construção da Nação brasileira.
Marginalização
e racismo são reflexos de um sistema escravocrata que estruturou de uma maneira
dual a sociedade brasileira. O golpe de mestre da elite brasileira do século
XIX se dá com uma Abolição de forma legal, porém sem alterar o sistema social
do qual era apenas o espelho. A sociedade se adaptou, visando a preservar, sob
a aparência jurídica de igualdade de todos perante a lei, a distinção social
entre a casa grande e a senzala.
Os
adeptos do mito da “Democracia Racial” se esquecem de que a Democracia
pressupõe igualdade e oportunidades para todos, assim como a participação ativa
nas decisões políticas. A Abolição da Escravatura (1888) não seria um processo
inconcluso, como afirmou o historiador, político e jornalista Décio Freitas
(1922- 2004), se o ato jurídico fosse complementado por mudanças sociais
efetivas, como uma reforma agrária que abolisse todo o latifúndio e a
implantação de um sistema educacional amplo e inclusivo.
A
longa trajetória de luta e organização dos afrodescendentes, desde a época em
que éramos Colônia de Portugal, nós podemos denominar de resistência cultural
negra. Desde a assinatura da Lei Áurea (1888), assinada pela princesa Isabel
(1846-1921), até os dias atuais, o caminho da inclusão social tem sido árduo
quanto ao combate do racismo - velado ou assumido –, e à intolerância às
tradições africanas. A escravidão, em suas diversas modalidades, ainda
nos espreita e reinventa-se por meio de mecanismos de exploração, subtraindo a
liberdade do ser humano e corroendo a própria existência.
*Pesquisador
e coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da
Costa Porto Alegre / RS / BR
Bibliografia
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Ilma Silva; BITTENCOURT JUNIOR, Losvaldyr Carvalho; SOUZA, Vinícius Vieira de.
Museu de Percurso do Negro. Prefeitura de Porto Alegre, Ed. Grafiserv, 2010.
Imagens:
1-
mapa do tráfico negreiro no Brasil
2-
Escravidão indígena na América espanhola
3-
Tráfico negreiro
4-
Zumbi dos Palmares
5-
Oliveira Silveira / idealizador do Dia da Consciência Negra no Brasil
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