Pedro
Silva Pereira* - Jornal de Notícias, opinião
Poucas
vezes é possível apanhar um pirómano em flagrante, ainda de lata de gasolina na
mão, mas foi o que aconteceu esta semana quando as televisões transmitiram as
especulações levianas de Wolfgang Schäuble sobre um eventual segundo resgate
para Portugal. Ainda ardiam as chamas do Brexit, semeando a incerteza e a
turbulência nos mercados, e já o ministro das Finanças da Alemanha, de forma
totalmente irresponsável, desferia, por razões mesquinhas de cariz puramente
ideológico-partidário, um golpe baixo de pura agressão contra o Governo de
Portugal e a escolha democrática que os portugueses fizeram no sentido de virar
a página da austeridade.
As
declarações de Schäuble mereceram condenação geral, é certo. Mas de pouco serve
essa condenação se ela se fizer ao estilo de Passos Coelho, que se limitou a
questionar a sua "oportunidade" mas lá foi acrescentando palavras de
compreensão para com o seu amigo alemão porque, bem vistas as coisas, é a
política do Governo português que "não gera confiança".
O
que está em causa é muito mais grave do que o potencial incendiário das
imprudentes declarações de Schäuble. Grave, mesmo, é a "narrativa
alemã" que lhe está subjacente, porque é ela que está a prejudicar
Portugal e a atrofiar a resposta da União Europeia à crise.
Por
estranho que possa parecer a quem viu o debate no Reino Unido focar-se na
política de imigração e no confronto entre a soberania democrática nacional e a
burocracia de Bruxelas, há hoje uma corrente de pensamento na Direita alemã,
mas também noutros países do Centro e do Norte da Europa que, contra toda a
evidência, pretende sustentar a tese de que o descontentamento que explica o
Brexit e outros movimentos eurocéticos se deve, imagine-se, à "falta de
credibilidade" das regras orçamentais, isto é, à insuficiente disciplina
na execução da política de austeridade! É essa doutrina extraordinária que
inspira as críticas de Schäuble a qualquer inflexão na política de austeridade
em Portugal, mas é ela também que inspira a luta do líder alemão do PPE pela
aplicação de sanções a Portugal e à Espanha, e se possível também à França e à
Itália, tal como é ela que inspira a recusa do PPE, feita esta semana em
conferência de imprensa, da proposta de Renzi de responder ao Brexit com mais
flexibilidade orçamental e resolução dos problemas estruturais da arquitetura
institucional do euro, incluindo a mutualização das dívidas.
O
caso é sério. Quem, como Schäuble, alimenta permanentemente o argumento
falacioso de que os alemães andam a pagar os faustosos benefícios sociais dos
portugueses, não pode depois dizer-se surpreendido por ver progredir nesse
caldo de cultura o populismo nacionalista, adversário do projeto europeu. Do
mesmo modo, quem, como Passos Coelho, sempre se bateu pelo triunfo da
"narrativa alemã", não deveria surpreender-se com a imposição de
sanções absurdas, que não são outra coisa do que o corolário lógico dessa
narrativa.
Não
há volta a dar: o projeto europeu só será capaz de superar este Cabo das
Tormentas se a "narrativa alemã" for denunciada - e derrotada.
*Eurodeputado
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