A
poucos meses das eleições presidenciais, Noam Chomsky relata: desigualdade
provocada pelos ricos tragou maiorias, reduziu democracia a fachada e alimenta
fenômento Trump
Entrevista
a C.J. Polychroniou, no Truthout - Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
(Primeira de duas partes. A próxima, sobre relações externas será publicada breve)
Os
Estados Unidos estão enfrentando um tempo de incertezas. Embora permaneçam como
único superpoder global, não são mais capazes de influenciar os fatos e seus
resultados conforme desejam, ao menos não a maioria destes fatos. A frustração
e ansiedade a respeito do risco de desastres futuros parecem ter peso muito
maior que as esperanças dos eleitores por uma ordem mundial mais justa e
racional. Enquanto isso, afirma Noam Chomsky, a ascensão e a popularidade de
Donald Trump decorrem do fato de que a sociedade norte-americana vive um
processo de ruptura.
Nesta
entrevista exclusiva à Truthout, Noam Chomsky fala sobre o desenvolvimento
contemporâneo nos Estados Unidos e no mundo, e desafia a visão dominante sobre
luta de classes, neoliberalismo como resultado de leis econômicas, o papel dos
EUA como potência global, o status das economias emergentes e o poder do lobby
israelense.
Noam,
você tem afirmado que a ascenção de Donald Trump deve-se em grande parte ao
colapso da sociedade norte-americana. O que exatamente quer dizer com isso?
As
políticas estatais-corporativas dos últimos 35 anos, aproximadamente, tiveram
efeitos devastadores sobre a maioria da população. Resultaram diretamente em
estagnação e nítido aumento da desigualdade. Isso gerou medo e fez as pessoas
sentirem-se isoladas, desamparadas, vítimas de forças poderosas que não entendem
e não podem influenciar. O colapso não é causado por leis econômicas. São
políticas, uma espécie de luta de classes travada pelos ricos e poderosos
contra a população pobre e trabalhadora. Isso é o que define o período do
neoliberalismo, não somente nos EUA mas também na Europa e em outros lugares.
Trump é atraente para aqueles que sentem e experimentam a desagregação da
sociedade norte-americana – profundos sentimentos de raiva, medo, frustração,
desamparo. Provavelmente, há setores da população que vivem um aumento na
mortalidade, algo antes desconhecido — a não ser na guerra.
A
guerra de classes mantém-se tão perversa e unilateral como sempre. A governança
neoliberal nos últimos trinta anos, fosse o governo republicano ou democrático,
intensificou enormemente o processo de exploração e levou a fissuras ainda
maiores entre os que têm e os que não têm na sociedade norte-americana. Além
disso, não vejo a classe política neoliberal recuando, a despeito das
oportunidades abertas em razão da última crise financeira e pelo fato de um
democrata ocupar o centro na Casa Branca.
As
classes empresariais, que em larga medida governam o país, têm muita
consciência de classe. Não é uma distorsão descrevê-los como materialistas
vulgares, com valores e compromissos reversos. Foi somente há trinta anos que o
líder do sindicato mais poderoso reconheceu e criticou a “luta de classes
unilateral”, incessantemente travada pelo mundo empresarial. Ela teve êxito,
alcançando os resultados que você descreveu. Contudo, as políticas neoliberais
estão em ruínas. Elas acabaram por prejudicar os mais poderosos e privilegiados
(que as aceitaram para si mesmos apenas parcialmente, para começo de conversa),
de modo que não podem ser sustentadas.
É
muito impactante observar que as políticas que os ricos e poderosos adotam para
si mesmos são o exato oposto daquelas que impõem aos fracos e pobres. Assim, se
a Indonésia está numa crise financeira profunda, as instruções do Departamento
do Tesouro norte-americano (via FMI) correm para saldar a dívida (ao Ocidente),
aumentar as taxas de juros e desacelerar a economia, privatizar (de modo que
corporações ocidentais possam comprar os bens) e todo o resto do dogma
neoliberal. Para si mesmos, as políticas são esquecer suas dívidas, reduzir a
zero as taxas de juros, nacionalizar (sem usar a palavra) e despejar recursos
públicos no bolso das instituições financeiras, e daí por diante. É também
impressionante que o tremendo contraste passe desapercebido, visto que está de
nos registros da história econômica dos últimos séculos, razão fundamental da
separação entre primeiro e terceiro mundos.
Até
aqui, a política de classes, está apenas marginalmente sob ataque. O governo
Obama evitou dar até mesmo passos mínimos na direção de acabar e reverter o
ataque aos sindicatos. Obama até mesmo sinalizou, indiretamente e de modo
interessante, seu apoio a esse ataque. Vale recordar que a primeira viagem para
mostrar sua solidariedade com as classes trabalhadoras (denominada “classe
média”, na retórica dos EUA) foi à fábrica da Caterpillar em Illinois. Foi até
lá desafiando os pleitos de organizações religiosas e de direitos humanos, em
razão do papel grotesco da Caterpillar nos territórios ocupados por Israel,
onde é um instrumento preferencial na devastação das terras e vilas das
“pessoas erradas”. Mas parece não ter sido sequer notado que, adotando as
políticas antitrabalhistas de Reagan, a Caterpillar tornou-se a primeira
corporação industrial em gerações a quebrar um sindicato poderoso ao empregar
fura-greves, violando radicalmente as convenções internacionais do trabalho.
Isso isolou os EUA do mundo industrial, junto com a África do Sul do apartheid,
na tolerância a tais meios de minar os direitos dos trabalhadores e a
democracia – e, presumo, agora os EUA estão sós. É difícil acreditar que a
escolha tenha sido acidental.
Há
uma crença generalizada, ao menos entre alguns estrategistas políticos bem
conhecidos, de que fatos não definem as eleições norte-americanas – ainda que a
retórica seja de que os candidatos precisam entender a opinião pública para
conquistar eleitores – e sabemos, claro, que a mídia fornece uma riqueza de
informações falsas sobre temas críticos (tome o papel da mídia de massa antes e
durante o lançamento da guerra do Iraque) ou não fornece informação nenhuma
(sobre temas trabalhistas, por exemplo). Contudo, fortes evidências indicam que
o público norte-americano preocupa-se com as grandes questões sociais,
econômicas e de política externa enfrentadas pelo país. Por exemplo, conforme
estudo divulgado há alguns anos pela Universidade de Minnesota, os
norte-americanos colocavam os serviços de saúde entre os temas mais
importantes. Sabemos também que a grande maioria dos norte-americanos
apoia os sindicatos. E que julgaram um fracasso completo a guerra contra o
terror. À luz de tudo isso, qual a melhor maneira de entender a relação entre a
mídia, a política e o público na sociedade norte-americana contemporânea?
É
bem conhecido o fato de que as campanhas eleitorais são concebidas de modo a
marginalizar os problemas e concentrar-se em personalidades, estilos retóricos,
linguagem corporal etc. E há boas razões para isso. Gestores de partidos leem
as pesquisas, e estão bem conscientes de que, num grande conjunto de problemas,
os dois partidos estão bem à direita da população – o que não surpreende;
afinal, são partidos de negócios. Pesquisas mostram que a grande maioria dos
eleitores é contra, mas são as únicas escolhas oferecidas a eles num sistema
eleitoral gerido como negócio, em que o candidato mais pesadamente financiado
quase sempre vence.
Da
mesma forma, os consumidores podem preferir um transporte de massa decente a
escolher entre dois automóveis, mas esta opção não é prevista pelos
publicitários – na verdade, pelos mercados. A publicidade na televisão não
oferece informação sobre produtos; ao contrário, fornece ilusão e imagens
mentais. As mesmas empresas de relações públicas que buscam minar o mercado,
certas de que consumidores desinformados farão escolhas irracionais (ao
contrário de teorias econômicas abstratas), tentam, do mesmo modo, minar a
democracia. E os gestores estão bem conscientes disso tudo. Figuras influentes
no setor vangloriavam-se, na imprensa econômica, de que desde Reagan vêm
fazendo o marketing dos candidatos como se fossem commodities – e esse é seu
maior sucesso, pois, preveem, fornecem um modelo aos executivos das corporações
e indústria de marketing do futuro.
Você
mencionou a pesquisa de Minnesota sobre serviços de saúde. Ela é típica.
Durante décadas, estudos mostraram que a saúde está no topo, ou perto dele, nas
preocupações da população – não por acaso, dado o desastroso fracasso do
sistema de saúde, com custo per capita duas vezes mais alto que o de sociedades
comparáveis e alguns dos piores resultados. (…) Acontece que a indústria
manufatureira vem sofrendo em razão do sistema de saúde privatizado, caro e
ineficiente, e dos enormes privilégios garantidos, por lei, à indústria
farmacêutica. Quando um grande setor de concentração de capital favorece um
programa, ele se torna “politicamente possível” e tem “apoio político”. Tão
revelador quanto os próprios fatos é que eles não são comunicados.
Muito
disso é verdade para várias outras questões, domésticas e internacionais.
A
economia dos EUA está enfrentando uma miríade de problemas, embora os lucros
dos ricos e das corporações já tenham, há tempos, voltado aos níveis
anteriores à erupção da crise financeira de 2008. Mas o problema da dívida
governamental é o único que a maioria dos analistas acadêmicos e financeiros
parece focar como o mais crítico. De acordo com os analistas mainstream, a
dívida dos EUA está quase fora do controle, razão pela qual eles vêm se
posicionando consistentemente contra os pacotes de grande estímulo econômico
para o crescimento, sob o argumento de que tais medidas apenas mergulharão os
EUA mais profundamente na dívida. Qual é o impacto provável que uma dívida
inflada terá na economia norte-americana e na confiança dos investidores
internacionais, diante de eventual nova crise financeira?
Ninguém
sabe realmente. A dívida foi muito mais alta no passado, particularmente depois
da Segunda Guerra Mundial. Mas foi superada, graças ao notável crescimento da
economia, semidirigida no tempo da guerra. Por isso, sabemos que, se o governo
incentiva o crescimento sustentável da economia, a dívida pode ser controlada.
E há outros artifícios, como a inflação. Mas, quanto ao resto, trata-se de
muita suposição. Os principais financiadores – principalmente China, Japão, os
países produtores de petróleo – podem decidir transferir seu capital para outro
lugar em busca de lucros mais altos. Mas há poucos sinais desses movimentos, e
eles não são muito prováveis. Os financiadores participam da sustentação da
considerável economia dos EUA para suas próprias exportações. Não há como fazer
previsões confiáveis, mas parece claro que o mundo inteiro está numa situação
delicada, para dizer o mínimo.
Você
parece acreditar, ao contrário de tantos outros, que os EUA mantêm-se como um
superpoder econômico, político e, claro, militar, mesmo depois da última crise.
Também tenho a mesma impressão, uma vez que o resto das economias do mundo não
somente não estão em condições de desafiar a hegemonia norte-americana, como
olham para os EUA como um salvador da economia global. O que você vê como vantagens
competitivas do capitalismo dos EUA sobre a economia da União Europeia e as
novas economias emergentes na Ásia?
A
crise financeira de 2007-2008 foi originada principalmente nos EUA, mas seus
principais competidores – a Europa e o Japão – acabaram sofrendo mais
severamente, e os EUA mantiveram-se o local preferido dos investidores que
buscam segurança em tempo de crise. As vantagens dos EUA são substantivas. Eles
têm amplos recursos internos. São unificados, um fato importante. Até a guerra
civil nos anos 1860, a frase “Estados Unidos” era plural (como ainda é nas
línguas europeias). Mas desde então, vem sendo usada no singular, no inglês
padrão. As políticas traçadas em Washington pelo poder estatal e capital
concentrado valem para todo o país. Isso é muito mais difícil na Europa. Há
muitas vantagens da unidade. Alguns dos efeitos nocivos da inabilidade europeia
para coordenar a respostas à crise têm sido amplamente discutidas pelos
economistas europeus.
As
raízes históricas dessas diferenças entre a Europa e os EUA são familiares.
Séculos de… conflitos impuseram um sistema de estado-nação na Europa, e a
experiência da Segunda Guerra Mundial convenceu os europeus de que devem
abandonar seu esporte tradicional de trucidar uns aos outros, porque a próxima
tentativa seria a última. Então temos aquilo que os cientistas políticos gostam
de denominar “uma paz democrática”, ainda que nem de longe esteja claro se a
democracia tem algo a ver com isso. Em contraste, os EUA são um Estado
colonizador-colonial, que assassinou a população indígena e confinou os
remanescentes em “reservas”, ao mesmo tempo em que conquistava metade do México
e expandia-se para além. Muito mais que na Europa, a rica diversidade interna
foi destruída. A guerra civil cimentou o poder central e, da mesma forma, a
uniformidade em outros domínios: linguagem nacional, padrões culturais, enormes
projetos público-privados de engenharia social tais como a suburbanização da
sociedade, subsídio central maciço à indústria avançada por meio de pesquisa e
desenvolvimento, aquisição e outros instrumentos, e muito mais.
As
novas economias emergentes na Ásia têm incríveis problemas internos,
desconhecidos no Ocidente. Sabemos mais sobre a Índia do que sobre a China,
porque é uma sociedade mais aberta. Há razões pelas quais ela está em 130º
lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (mais ou menos onde estava
antes da reformas neoliberais parciais); a China está no 90º lugar, e poderia
ser pior se se soubesse mais a respeito do país. Isso apenas arranha a
superfície. No século 18, China e Índia eram os centros comerciais e
industriais do mundo, com sistemas de mercado sofisticados, níveis avançados de
saúde pelos padrões comparativos etc. Mas conquistas imperiais e políticas
econômicas deixaram-nos em condições miseráveis. É notável que o único país do
Sul Global a desenvolver-se foi o Japão, o único que não foi colonizado. A
correlação não é acidental.
Os
EUA ainda estão ditando as políticas do FMI?
Isso
não é claro, mas meu entendimento é que os economistas do FMI supostamente são,
talvez sejam, de certa forma independentes dos políticos. No caso da Grécia, e
da austeridade em geral, os economistas publicaram alguns papers fortemente
críticos aos programas da União Europeia, mas os políticos parecem estar
ignorando-os.
Foto:
Sem-teto, fenômeno marcante da paisagem norte-americana de hoje. Para Chomsky,
“políticas estatais-corporativas dos últimos 35 anos tiveram efeitos
devastadores sobre a maioria da população”
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