Isabel
Moreira – Expresso, opinião
Vem
este título a propósito da proposta de lei do governo sobre o tabaco (vou
designá-la assim para simplificar). A proposta desceu à especialidade sem
votação, o que é bom. Tal como está, é inaceitável.
Tenho
ouvido alguns comentários no sentido de que esta questão do fumo, do vapor, da
restrição de direitos de fumadores e de utilizadores de cigarros eletrónicos e
de outros cigarros sem combustão não tem “grande importância”.
Penso
que essa indiferença resulta de a nossa cultura democrática ser pobre no que
toca à interiorização de direitos individuais. Parece que estamos satisfeitos
com a democracia formal, com o sufrágio, mas não perdemos grande tempo a
refletir sobre diplomas que tocam fundo no modelo de sociedade em que vivemos.
Não perdemos grande tempo a discutir se é normal que o Estado condene
comportamentos, não porque eles prejudiquem terceiros, mas pelo seu
“simbolismo”. Por exemplo, quando no diploma do governo se proíbe que se fume
um cigarro numa varanda de determinados edifícios (terá de ser na rua a x
metros desses edifícios, como os órgãos de soberania, imagine-se) a mensagem
que ali se está a passar não diz respeito apenas aos fumadores. Pelo contrário,
diz respeito à cidade como um todo.
Queremos
viver num Estado perseguidor de comportamentos lícitos (sim, fumar é lícito) ao
ponto de estigmatizar uma categoria de cidadãos na esperança “moral” de que
esses “maus exemplos” desistam de fazer “más escolhas para a sua própria
saúde”?
Seria
o mesmo que estigmatizar por via da fiscalidade todos os que não comem uma
alimentação “ideal” até que esses se vergassem ao mito de um pano de vida
traçado pelo estado e não pelos próprios.
De
resto, já se deram conta de que todos os dias homens e mulheres estão parados
em paragens de autocarros a levarem com doses maciças de poluição? O que fazer?
Proibir que se fume a cinco metros de determinados edifícios. A sério?
O
diploma do governo imprime um modelo de sociedade sob o pretexto de estar a
proteger a saúde pública. Esse modelo de sociedade passa por delinear um
“modelo de cidadão” com um “padrão comportamental”. Nada que a história
desconheça.
A
prova deste ímpeto moral do legislador e da fraude na alegada defesa da saúde
pública está no tratamento que o diploma dá aos cigarros eletrónicos (CE), aos
cigarros sem combustão, sem fumo, sem tabaco, apenas com vapor, com ou sem
nicotina, dispositivos que têm salvado milhões de vidas pelo mundo fora. No
diploma, os cigarros eletrónicos, que são 95% menos prejudiciais para a saúde
do que os cigarros normais e que não prejudicam terceiros, são incentivados
(como no RU ou na Suécia) ou perseguidos, como no puritanismo americano?
São
diabolizados e perseguidos: é o critério da exemplaridade como critério de
restrição da liberdade geral da ação.
Este
diploma assume que não são conhecidos os efeitos que podem advir de novos
produtos como os cigarros eletrónicos, sem combustão, sem fumo, sem tabaco, ou
de outros com tabaco, mas sem combustão e usa “à partida” o princípio da
precaução para equiparar fumar ao que não é fumar e aplicar uma lógica de
restritiva contraproducente e desproporcionada aos nossos comportamentos livres
e lícitos.
Os
estudos proliferam. Não estamos em 2006. Estamos em 2016, por mais que determinados
lóbis façam fazer por esquecer. Não tenho tempo para descrever a longa história
nesta matéria da OMS ainda aquando da elaboração da diretiva europeia sobre o
tabaco. Percebe-se uma coisa: aleija muita gente que as farmacêuticas não
tenham o monopólio dos produtos que ajudam a deixar de fumar.
O
princípio da precaução é um subprincípio do princípio da proporcionalidade e só
deve ser utilizado quando há certeza absoluta (sob pena de não haver evolução
na análise da utilização do bem y ou y) de que – no caso – há riscos para
terceiros e, ainda assim, sob o chapéu do princípio da proporcionalidade. A
seguir a lógica deste diploma, a comercialização de micro-ondas e de telemóveis
teria sido proibida. Por precaução, certo?
A
lógica deste diploma é esta: “a única forma segura de não fumar é não fumar”. Incluindo o que a lei inventou que passou a ser fumar. Na alínea s) do artigo
2º somos informados que cigarros eletrónicos que não têm combustão, não têm
fumo, produzem apenas vapor, “afinal” integram o novo conceito de “fumar”.
Porquê? Porque o governo do partido que despenalizou o consumo das drogas entre
incentivar um produto que tem comprovadamente contribuído mundialmente para
salvar milhares de vida diz isto ao povo: “ou abstencionismo ou tabaco!” Eis a proporcionalidade
e toda uma política de “saúde pública”.
O
apelo ao abstencionismo mantém-se no artigo 15. Está demonstrado que é melhor
vapear CE do que fumar. Está demonstrado que os CE salvam vidas. Conclusão:
proíbe-se a publicidade a produtos que salvam vidas. Excessivo e absurdo, não?
Sabem
como é no Reino-Unido? Acabaram com os proibicionismos e têm frases sobre
alternativas aos cigarros nos maços de tabaco em vez de imagens tipo bullying
de terror que mais não geram do que habituação às mesmas.
Podem
sempre dizer que é desagradável o cheiro do vapor que sai de um cigarro
eletrónico. Lá está: a liberdade incomoda. E isso é bom. Sermos livres implica algum
incómodo recíproco, incómodo esse que só pode ser reprimido se for
verdadeiramente relevante. Não gosto do perfume de muita gente. Incomoda-me. E
vivo com isso. É da liberdade.
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