domingo, 16 de outubro de 2016

PRAÇA DA JORNA NA PALMA DA MÃO



Manuel Carvalho da Silva* - Jornal de Notícias, opinião

Realiza-se na próxima quinta-feira, na Universidade de Coimbra, um evento inédito na Europa: a primeira sessão plenária da simulação da Conferência Internacional do Trabalho (CIT), - o órgão deliberativo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - feita por estudantes desta universidade, que assumirão o "papel" de representantes dos trabalhadores, empregadores e governos, conforme o modelo tripartido da OIT. Esta sessão contará com a presença de Guy Ryder, diretor-geral da OIT, que lhes apresentará o tema "O futuro do trabalho", em torno do qual a OIT prepara a celebração dos seus 100 anos em 2019. Os mais de 350 jovens envolvidos vão, por um lado, simular a prática institucional de uma das mais importantes organizações internacionais e, por outro, participar no debate substantivo do futuro do trabalho.

O futuro do trabalho enfrenta diversos desafios que podem fazer perigar os princípios fundadores, os objetivos e a agenda da OIT para um trabalho decente, ou seja, para trabalho com direitos, com efetiva proteção social e sem discriminações de idade, etnia, género ou credo. A conferência trabalhará quatro importantes subtemas: a macrorregulação económica, as desigualdades no trabalho e no emprego, o futuro das relações laborais e os impactos das mudanças tecnológicas. É sobre este último que hoje me debruço.

Num panorama desolador de centenas de milhões de desempregados, vagas sucessivas de mudança tecnológica e de automação, despidas de enquadramento social, constituem um dos principais desafios que se colocam hoje um pouco por todo o Mundo. A emergência da erradamente intitulada "economia colaborativa" é anunciada como um admirável Mundo novo, onde através de plataformas digitais descarregadas nos nossos telemóveis teríamos um novo modelo de oferta de trabalho, flexível, à medida das necessidades e da "autonomia" de cada trabalhador, com eventuais vantagens para os consumidores. Se hoje os exemplos mais notórios são os transportes, como acontece com a Uber ou a Cabify, existem já inúmeras aplicações que alargam este modelo a novos serviços e atividades e a trabalhos no domicílio, alguns de enorme responsabilidade para quem o executa. Quem atribui trabalho surge dispensado da responsabilidade de empregador.

À boleia de um deslumbramento tecnológico, que o discurso político utiliza amiúde, são impostas políticas que nada trazem em termos de ganhos da produtividade. O trabalhador, apresentado como empreendedor independente fica, de facto, nas mãos dos apetites de plataformas monopolistas, vendendo o seu trabalho na estrita medida das "tarefas" que surgem e colocado em concorrência selvagem com os seus companheiros de trabalho. Mais do que um futuro promissor, assistimos a um real regresso ao passado, ao trabalho à jorna ou à peça. Sem direitos coletivos (que ancoram os individuais), sem possibilidade de qualquer negociação séria.

A reposição do direito à negociação coletiva, a salários e pensões mais justos e a direitos sociais fundamentais, significa somente o regresso à democracia e ao progresso. Relações laborais assentes em poder avassalador e unilateral dos grandes grupos económicos, novas formas de organização e prestação do trabalho inseridas numa desregulação selvagem, constituem o regresso à vergonha civilizacional das praças de jorna, agora deslocadas para o telemóvel na mão de cada candidato a trabalho. Já não há trabalho, mas "atividades" e o emprego surge como conceito renegado.

Em vários países, designadamente nos EUA e em Inglaterra, surgem lutas laborais que abrem novos horizontes e desmistificam este "futuro" que os poderes dominantes nos querem impor. Não podemos esperar pela reinvenção destas plataformas digitais para encetar um processo de revitalização da regulação. Os direitos laborais têm de estar garantidos à partida, em qualquer processo de organização da economia e do trabalho. A tecnologia só serve o progresso humano se organizada de forma a servir-nos a todos e não apenas a alguns. Esta é uma lição da história que necessitamos de valorizar para as gerações que agora chegam ao mercado de trabalho.

*Investigador e professor universitário

Sem comentários:

Mais lidas da semana