Recentemente,
explodiu nas televisões americanas um novo tipo de «documentário» a que chamam
docufiction. Ficção apresentada como se abordasse uma realidade factual. É o
caso da série da RTP dedicada a Stáline. Uma fraude documental com um objectivo
ideológico preciso, no ano em que se celebra o centenário da Revolução de
Outubro. A RTP, paga por todos nós, dá tempo de antena a propaganda que os
nazis não desdenhariam.
António
Santos, opinião
Acabo
de assistir a «O Demónio», o primeiro episódio da mini-série «Apocalipse:
Estaline». Durante uma hora, Isabelle Clarke dedica o seu «documentário» a
convencer-nos de que Estaline foi o que o título diz: um demónio. Veja-se:
«Lénine e um punhado de homens lançaram a Rússia no caos. (…) Como os
cavaleiros do Apocalipse, os bolcheviques semeiam morte e destruição para se
manterem no poder. Continuarão durante 20 anos, até os alemães chegarem às
portas de Moscovo». Estaline surge como um «louco», «sexualmente insaciável» e
com uma «mentalidade próxima dos tiranos do Médio Oriente» [sic] que só Hitler
pode parar. Num frenesim anacrónico, o espectador é levado de «facto» em
«facto» sem direito a perguntas nem a explicações. Para trás e para a frente,
dos anos quarenta para o final do século XIX, de 10 milhões de mortos na guerra
civil russa para 5 milhões de mortos no «holodomor: a fome organizada por
Estaline», o puzzle está feito para ser impossível de montar. Ao narrador basta
descrever o que, a julgar pelas imagens de arquivo, é aparentemente
indesmentível: «os camponeses ucranianos, vítimas das fomes estalinistas
abençoam os invasores alemães. Mais tarde serão enforcados pelos estalinistas.
A conjugação das imagens de arquivo colorizadas é tão brutal e convincente que
somos tentados a concordar com as palavras do narrador: «Estaline declarou
guerra ao seu próprio povo». São os «factos alternativos» de Trump aplicados à
História.
Só
há dois problemas. Primeiro: Isabelle Clarke, a autora, admite que «Apocalipse:
Estaline» não é História nem tem pretensões de querer sê-lo. Vou repetir, a
autora admite que aquilo que fez não tem nada a ver com História. Podia
terminar aqui. Mas, em segundo lugar, será que a RTP, canal público pago por
todos nós para cumprir a missão de educar e informar, sabia que estava a
comprar ficção em vez de História?
Claramente
a História, enquanto ciência social, passe a inelutável normatividade a que
estamos presos, é incompatível com a calúnia e a propaganda ou, numa palavra, a
demonização. «Apocalipse: Estaline - O Demónio» não disfarça a demonização,
disfarça a ficção.
Então,
o que é «Apocalipse, Estaline»? Recentemente, explodiu nas televisões
americanas um novo tipo de «documentário» a que chamam docufiction. Exemplos
recentes são «Sereias: o cadáver encontrado» ou «Megalodon, o tubarão monstro
vive». Em ambos, o documentário da Discovery Channel dá a palavra a cientistas,
investigadores, professores e biólogos que explicam a descoberta científica de
sereias, no primeiro caso e de um tubarão jurássico, no segundo. Durante uma
hora, o espectador assiste a filmagens convincentes dos míticos criptídos e
ouve especialistas, identificados como tal, debater as possíveis explicações
para as descobertas serôdias. No final, em letra de efeitos secundários de bula
de medicamento, admite-se, para quem ainda estiver a ver, que era tudo a
fingir: os especialistas eram actores, as imagens eram fabricadas. «Apocalipse,
Estaline» faz algo parecido: no final ficamos a saber a que «historiadores» foi
beber inspiração: a romancista Svetlana Alexievitch, uma versão actualizada de
Alexander Soljenitsyne; Robert Service, o mais proselitista e criticado dos
historiadores-pop contemporâneos ou Pierre Rigoulot, um ex-trotskista
transformado em neocon apoiante de Bush e fã confesso da guerra do Iraque.
Trata-se contudo de menções honrosas e agradecimentos. Mas de onde vêm as
citações? Onde foi buscar os números? Quais são as fontes? Raquel Varela
coraria de vergonha alheia.
Não
se trata de admirar ou condenar Estaline, trata-se de não sermos tomados por
parvos. «Apocalipse: Estaline» não é ficção nem História: é uma falsificação
estupidificante e tóxica para o público. Como os novos «documentários» sobre
sereias e tubarões jurássicos, que confundem ciência com ficção, a RTP acabou
de confundir História com propaganda nazi.
*O Diário.info
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