Pepe
Escobar*
Nos
manuais estadunidenses as ações não-convencionais contra “forças hostis” a
Washington. A centralidade do Pré-Sal no impeachment. Como os super-ricos
cooptam a velha classe média.
O
Brasil no epicentro da Guerra Híbrida
Revoluções
coloridas nunca são demais. Os Estados Unidos, ou o Excepcionalistão, estão
sempre atrás de atualizações de suas estratégias para perpetuar a hegemonia do
seu Império do Caos.
A
matriz ideológica e o modus operandi das revoluções coloridas já são, a essa
altura, de domínio público. Nem tanto, ainda, o conceito de Guerra
Não-Convencional (UW, na sigla em inglês).
Esse
conceito surgiu em 2010, derivado do Manual para Guerras Não-Convencionais das
Forças Especiais. Eis a citação-chave: “O objetivo dos esforços dos EUA nesse
tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades políticas, militares, econômicas
e psicológicas de potências hostis, desenvolvendo e apoiando forças de
resistência para atingir os objetivos estratégicos dos Estados Unidos. […] Num
futuro previsível, as forças dos EUA se engajarão predominantemente em
operações de guerras irregulares (IW, na sigla em inglês)”.
“Potências
hostis” são entendidas aqui não apenas no sentido militar; qualquer país que
ouse desafiar um fundamento da “ordem” mundial centrada em Washington pode ser
rotulado como “hostil” – do Sudão à Argentina.
As
ligações perigosas entre as revoluções coloridas e o conceito de Guerra
Não-Convencional já desabrocharam, transformando-se em Guerra Híbrida; caso
perverso de Flores do Mal. Revolução colorida nada mais é que o primeiro
estágio daquilo que se tornará a Guerra Híbrida. E Guerra Híbrida pode ser
interpretada essencialmente como a Teoria do Caos armada – um conceito absoluto
queridinho dos militares norte-americanos (“a política é a continuidade da
guerra por meios linguísticos”). Meu livro Império do Caos, de 2014, trata
essencialmente de rastrear uma miríade de suas ramificações.
Essa
bem fundamentada tese em três partes esclarece o objetivo central por trás de
uma Guerra Híbrida em larga escala: “destruir projetos conectados
transnacionais multipolares por meio de conflitos provocados externamente
(étnicos, religiosos, políticos etc.) dentro de um país alvo”.
Os
países do BRICS (Brasil Rússia, Índia, China e África do Sul) – uma
sigla/conceito amaldiçoada no eixo Casa Branca-Wall Street – só tinham de ser
os primeiros alvos da Guerra Híbrida. Por uma miríade de razões, entre elas: o
plano de realizar comércio e negócios em suas próprias moedas, evitando o dólar
norte-americano; a criação do banco de desenvolvimento dos BRICS; a declarada
intenção de aumentar a integração na Eurásia, simbolizada pela hoje convergente
“Rota da Seda”, liderada pela China – Um Cinturão, Uma Estrada (OBOR, na sigla
em inglês), na terminologia oficial – e pela União Econômica da Eurásia,
liderada pela Rússia (EEU, na sigla em inglês).
Isso
implica em que, mais cedo do que tarde, a Guerra Híbrida atingirá a Ásia
Central; o Quirguistão é o candidato ideal a primeiro laboratório para as
experiências tipo revolução colorida dos Estados Unidos, ou o Excepcionalistão.
No
estágio atual, a Guerra Híbrida está muito ativa nas fronteiras ocidentais da
Rússia (Ucrânia), mas ainda embrionária em Xinjiang, oeste longínquo da China,
que Pequim microgerencia como um falcão. A Guerra Híbrida também já está sendo
aplicada para evitar o estratagema da construção de um oleoduto crucial, a
construção do Ramo da Turquia. E será também totalmente aplicada para
interromper a Rota da Seda nos Balcãs – vital para a integração comercial da
China com a Europa Oriental.
Uma
vez que os BRICS são a única e verdadeira força em contraposição ao
Excepcionalistão, foi necessário desenvolver uma estratégia para cada um de
seus principais personagens. O jogo foi pesado contra a Rússia – de sanções à
completa demonização, passando por um ataque frontal a sua moeda, uma guerra de
preços do petróleo e até mesmo uma (patética) tentativa de iniciar uma
revolução colorida nas ruas de Moscou. Para um membro mais fraco dos BRICS foi
preciso utilizar uma estratégia mais sutil, o que nos leva à complexidade da
Guerra Híbrida aplicada à atual, maciça desestabilização política e econômica
do Brasil.
No
manual da Guerra Híbrida, a percepção da influência de uma vasta “classe média
não-engajada” é essencial para chegar ao sucesso, de forma que esses
não-engajados tornem-se, mais cedo ou mais tarde, contrários a seus líderes
políticos. O processo inclui tudo, de “apoio à insurgência” (como na Síria) a
“ampliação do descontentamento por meio de propaganda e esforços políticos e
psicológicos para desacreditar o governo” (como no Brasil). E conforme cresce a
insurreição, cresce também a “intensificação da propaganda; e a preparação
psicológica da população para a rebelião.” Esse, em resumo, tem sido o caso brasileiro.
Precisamos
do nosso próprio Saddam.
Um
dos maiores objetivos estratégicos do Excepcionalistão é em geral um mix de
revolução colorida e Guerra Híbrida. Mas a sociedade brasileira e sua vibrante
democracia eram muito sofisticadas para métodos tipo hard, tais como sanções ou
a “responsabilidade de proteger” (R2P, na sigla em inglês).
Não
por acaso, São Paulo tornou-se o epicentro da Guerra Híbrida contra o Brasil.
Capital do estado mais rico do Brasil e também capital econômico-financeira da
América Latina, São Paulo é o nódulo central de uma estrutura de poder
interconectada nacional e internacionalmente.
O
sistema financeiro global centrado em Wall Street – que domina virtualmente o
Ocidente inteiro – não podia simplesmente aceitar a soberania nacional, em sua
completa expressão, de um ator regional da importância do Brasil.
A
“Primavera Brasileira” foi virtualmente invisível, no início, um fenômeno
exclusivo das mídias sociais – tal qual a Síria, no começo de 2011.
Foi
quando, em junho de 2013, Edward Snowden revelou as famosas práticas de
espionagem da NSA. No Brasil, a questão era espionar a Petrobras. E então, num
passe de mágica, um juiz regional de primeira instância, Sérgio Moro, com base
numa única fonte – um doleiro, operador de câmbio no mercado negro – teve
acesso a um grande volume de documentos sobre a Petrobras. Até o momento, a
investigação de dois anos da Lava Jato não revelou como eles conseguiram saber
tanto sobre o que chamaram de “célula criminosa” que agia dentro da Petrobras.
O
importante é que o modus operandi da revolução colorida – a luta contra a
corrupção e “em defesa da democracia” – já estava sendo colocada em prática.
Aquele era o primeiro passo da Guerra Híbrida.
Como
cunhado pelos Excepcionalistas, há “bons” e “maus” terroristas causando
estragos em toda a “Siraq”; no Brasil há uma explosão das figuras do corrupto
“bom” e do corrupto “ruim”.
O
Wikileaks revelou também como os Excepcionalistas duvidaram da capacidade do
Brasil de projetar um submarino nuclear – uma questão de segurança nacional.
Como a construtora Odebrecht tornava-se global. Como a Petrobras desenvolveu,
por conta própria, a tecnologia para explorar depósitos do pré sal – a maior
descoberta de petróleo deste jovem século 21, da qual as Grandes Petrolíferas
dos EUA foram excluidas por ninguém menos que Lula.
Então,
como resultado das revelações de Snowden, a administração Roussef exigiu que
todas as agências do governo usassem empresas estatais em seus serviços de
tecnologia. Isso poderia significar que as companhias norte-americanas
perderiam até US$ 35 bilhões de receita em dois anos, ao ser excluídos de
negociar na 7ª maior economia do mundo – como descobriu o grupo de pesquisa
Fundação para a Informação, Tecnologia & Inovação (Information Technology
& Innovation Foundation).
O
futuro acontece agora.
A
marcha em direção à Guerra Híbrida no Brasil teve pouco a ver com as tendências
políticas de direita ou esquerda. Foi basicamente sobre a mobilização de
algumas famílias ultra ricas que governam de fato o país; da compra de grandes
parcelas do Congresso; do controle dos meios de comunicação; do comportamento
de donos de escravos do século 19 (a escravidão ainda permeia todas as relações
sociais no Brasil); e de legitimar tudo isso por meio de uma robusta, embora
espúria tradição intelectual.
Eles
dariam o sinal para a mobilização da classe média. O sociólogo Jesse de Souza
identificou uma freudiana “gratificação substitutiva”, fenômeno pelo qual a
classe média brasileira – grande parte da qual clama agora pela mudança do
regime – imita os poucos ultra ricos, embora seja impiedosamente explorada por
eles, através de um monte de impostos e altíssimas taxas de juros.
Os
0,0001% ultra ricos e as classes médias precisavam de um Outro para demonizar –
no estilo Excepcionalista. E nada poderia ser mais perfeito para o velho
complexo da elite judicial-policial-midiática do que a figura de um Saddam
Hussein tropical: o ex-presidente Lula.
“Movimentos”
de ultra direita financiados pelos nefastos Irmãos Kock pipocaram
repentinamente nas redes sociais e nos protestos de rua. O procurador geral de
justiça do Brasil visitou o Império do Caos chefiando uma equipe da Lava Jato
para distribuir informações sobre a Petrobras que poderiam sustentar acusações
do Ministério da Justiça. A Lava Jato e o – imensamente corrupto – Congresso
brasileiro que depôs a presidenta Dilma sem culpa, revelaram-se uma coisa só.
Àquela
altura, os roteiristas estavam seguros de que a infra-estrutura social para a
mudança de regime já havia produzido uma massa crítica anti-governo, permitindo
assim o pleno florescimento da revolução colorida. O caminho para um golpe soft
estava pavimentado – sem ter sequer de recorrer ao mortal terrorismo urbano
(como na Ucrânia). O problema era que, se o golpe soft falhasse – como parece
ser pelo menos possível, agora – seria muito difícil desencadear um golpe duro,
estilo Pinochet, através da UW, contra a administração sitiada de Roussef; ou
seja, executando finalmente a Guerra Híbrida Total.
No
nível socioeconômico, a Lava Jato seria um “sucesso” total somente se fosse
espelhada por um abrandamento das leis brasileiras que regulam a exploração do
petróleo, abrindo-a para as Grandes Petrolíferas dos EUA. Paralelamente, todos
os investimentos em programas sociais teriam de ser esmagados.
Ao
contrário, o que está acontecendo agora é a mobilização progressiva da
sociedade civil brasileira contra o cenário de golpe branco/golpe soft/mudança
de regime. Atores cruciais da sociedade brasileira estão se posicionando
firmemente contra a ilegalidade, da igreja católica aos evangélicos;
professores universitários do primeiro escalão; governadores estaduais; massas
de trabalhadores sindicalizados e trabalhadores da “economia informal”;
artistas; intelectuais de destaque; juristas; a grande maioria dos advogados; e
por último, mas não menos importante, o “Brasil profundo” que elegeu Rousseff
legalmente, com 54,5 milhões de votos.
A
disputa não chegará ao fim até que se ouça o canto de algum homem gordo do
Supremo Tribunal Federal. Certo é que os acadêmicos brasileiros independentes já
estão lançando as bases para pesquisar a Lava Jato não como uma operação
anti-corrupção simples e maciça; mas como estudo de caso final da estratégia
geopolítica dos Exceptionalistas, aplicada a um ambiente globalizado
sofisticado, dominado por tecnologia da informação e redes sociais. Todo o
mundo em desenvolvimento deveria ficar inteiramente alerta – e aprender as
relevantes lições, já que o Brasil está fadado a ser visto como último caso da
Soft Guerra Híbrida.
Tradução:
Vinícius Gomes Melo e Inês Castilho.
Fonte: Opera
Mundi. - em Desacato
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