M.Azancot de Menezes*, Díli
Há
uns dias, segundo o «Jornal Nacional», a principal figura política de
Timor-Leste, S.E. Ministro do Planeamento Estratégico, Kay Rala Xanana Gusmão,
teceu sérias críticas à qualidade da oferta formativa das Instituições de
Ensino Superior do nosso País
Enquanto
especialista em educação interpreto esta chamada de atenção como algo de muito
positivo e que deve merecer, sem preconceitos, a melhor atenção de governantes,
docentes, reitores, estudantes e de todas as forças vivas económicas, culturais
e religiosas da nossa sociedade, por uma razão muito simples, este problema é
de ordem conjuntural e estrutural.
Efectivamente,
quando a qualidade da oferta formativa das nossas Instituições de Ensino
Superior é questionada publicamente por um alto dirigente político, note-se,
supervisor do planeamento estratégico nacional, significa que a situação está
muito grave e o Estado timorense constatou que muitos dos nossos diplomados não
possuem as competências e os conhecimentos científicos necessários para
responderem com eficácia aos desafios da sociedade e ao desenvolvimento
económico do País.
Quando
estamos a pensar na qualidade do ensino superior deve colocar-se de imediato o
problema da perspectiva e da significação do próprio conceito. Qualquer cidadão
que não seja profissional da educação, compreensivelmente, poderá ter uma visão
menos adequada sobre a qualidade de uma universidade, com análises redutoras,
muitas vezes confinadas à problemática da competência dos docentes, contudo, há
aspectos fundamentais que não podem ser descurados em qualquer processo de
análise da qualidade do ensino superior.
Para
além da qualidade imprescindível do corpo docente, há outras dimensões a
ponderar que se entrecruzam, internas e externas ao sistema, e quando falamos
em qualidade, principalmente se o que está em causa é a educação, temos que
questionar, também, que tipo de qualidade nos interessa.
Mais
do que isso, temos que saber se essa qualidade irá ser usufruída por todos os
cidadãos timorenses, das zonas rurais e das zonas urbanas, e vai fazer deles
cidadãos competentes, com pensamento crítico, com capacidade científica e
técnica, com valores e princípios de ordem cultural, social e ética, para que
possam de forma digna e competente serem úteis a uma sociedade do conhecimento
verdadeiramente justa, democrática e solidária.
Em
contexto educacional, ao abordarmos a problemática da qualidade, para além da
importância das metodologias de ensino-aprendizagem, temos que considerar os
recursos didácticos, a oferta dos serviços académicos, o bom funcionamento das
instalações, a pertinência das políticas educativas, o currículo, ou seja, a
mudança que devemos defender para o nosso ensino superior em Timor-Leste terá
que depender de múltiplas dimensões, e do grau de qualidade de cada uma dessas
dimensões, pelo que, é imperioso assumirmos que a abordagem à universidade deve
ser complexa e multidimensional.
Em
contexto de universidade, seguindo a linha de raciocínio de Zabalza (2007),
devemos admitir que existem múltiplas dimensões que se cruzam entre si, em dois
espaços, um interno, e outro externo.
Ao
nível do espaço interno, a mudança qualitativa de qualquer universidade só
acontecerá se houver um aproveitamento de sinergias centrado nas «Competências
do Professor Universitário e dos Funcionários não docentes», na
«Instituição/Comunidade de Formação», na «Inovação Curricular e Pedagógica» e
nos «Estudantes», para citar apenas estas dimensões fundamentais que exercem
influência directa sobre a qualidade da «Docência».
Por
outro lado, em entrosamento com o espaço externo à universidade devemos
considerar, sempre, as dimensões da «Ciência, Investigação e Cultura», do
«Mundo do Trabalho e Sociedade», das «Políticas de Educação Superior» e da
«Avaliação Institucional e Acreditação».
Políticas
de educação superior e avaliação institucional e acreditação
No
pressuposto de que é válida esta visão complexa e multidimensional da
universidade, começo por destacar a vertente das “Políticas de Educação
Superior”, pois, é indiscutível, o sistema educativo de qualquer País, composto
por um conjunto de estruturas e processos necessários a garantir o sucesso
educativo, também é constituído por inúmeros actores, e alguns deles são os
protagonistas da concepção das políticas educativas e dos normativos que
supostamente, mas nem sempre isso acontece, devem garantir o bom funcionamento
da máquina educativa, com eficácia e eficiência.
As
políticas de educação superior só serão válidas se reflectirem uma linha
orientadora que se baseie no estado actual do desenvolvimento da nossa educação
superior e transporte consigo uma visão, uma missão, objectivos e metas que se
enquadrem num projecto social globalizante que tenha como fim último o
humanismo, a solidariedade e a justiça social.
A
esta dimensão externa que apelidei de “Políticas de Educação Superior”,
deveremos acrescentar a “Avaliação Institucional e Acreditação”, uma vertente
também do espaço externo, regulada pelo Estado, por vezes de forma menos
correcta, em especial, como já referi, em virtude do conceito de qualidade ser
polissémico, com várias interpretações, e dinâmico, o que torna difícil a
comunicação entre os diferentes actores envolvidos no processo de avaliação
institucional e acreditação.
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A
diversidade de factores que integram qualquer sociedade, os contextos
geográficos distintos, os sectores de formação diferenciados, as expectativas
municipais e regionais, os actores e as suas idiossincrasias, a importância do
levantamento de necessidades de formação, entre outras variáveis, culturais,
sociais e económicas, são questões que também devem merecer especial atenção do
Estado e das Instituições de Ensino Superior.
Mundo do Trabalho e Sociedade
A
dimensão da ética terá que ser uma imagem de marca das nossas Instituições de
Ensino Superior para que os nossos diplomados, em contexto de sociedade e
mercado de trabalho, sejam competentes em termos científicos e técnicos, e
detenham igualmente competências de terceiro nível, como a honestidade
intelectual, o sentido de justiça, o respeito pelo outro, num cenário social
que seja caracterizado pelo humanismo, pela solidariedade e pela justiça
social.
Ainda
no âmbito do «Mundo do Trabalho e Sociedade» é preciso compreendermos que as
nossas universidades deverão tomar em devida atenção a importância da coerência
entre a oferta e a procura de quadros superiores. Neste aspecto, o Estado
deverá ter um papel chave no processo de levantamento de necessidades de
formação. Esta preocupação parece-me crucial porque o investimento aplicado em
educação só fará sentido e terá muito a ganhar se tiver como suporte um sistema
eficaz de levantamento de necessidades de formação que garanta a articulação
entre a oferta e a procura de recursos humanos, obviamente, em termos de
perspectiva futura.
Portanto,
este é o meu alerta, se não houver articulação entre o governo e as
instituições de ensino superior no que diz respeito ao levantamento de necessidades
de formação, para além de gastos financeiros desnecessários, corremos o sério
risco de caminharmos para o desemprego estrutural. Havendo a possibilidade de
surgimento de um cenário hipotético desta natureza, parece-me de todo o
interesse haver iniciativas conducentes à organização de um sistema de
levantamento de necessidades de formação ao nível sectorial e municipal com o
envolvimento crescente das empresas e de outros empregadores, e que permita
garantir a coerência entre a oferta e a procura de recursos humanos.
Repare-se
que esta questão do levantamento de necessidades de formação deve merecer a
atenção nacional e um debate sério e profundo nas áreas do ensino e da formação
profissional, pois, como alguém já afirmou, esta questão deve ser vista como
uma estratégia, por um lado, contra o desemprego, por outra parte, para a
promoção do emprego.
Ciência,
investigação e cultura
Uma
outra dimensão, a «Ciência, Investigação e Cultura», reveste-se de particular
importância porque o Estado deve apoiar sem reservas a investigação, a cultura
e a inovação tecnológica, mesmo que haja necessidade prévia de se discutir os
critérios de uma política de ciência.
Neste
sentido, entendo que o Estado deve ter, cada vez mais, um papel activo no
sentido de criar expectativas positivas às instituições de ensino superior
sobre este domínio. Estou a fazer uma afirmação que para muitos parece óbvia,
contudo, apesar de estarmos a referir-nos à importância do investimento do
Estado na ciência e na cultura, este dossier encontra-se quase sempre sujeito
às restrições do poder e às incertezas da política mesmo sabendo nós que
compete ao Estado respeitar a atitude da comunidade científica.
De
forma célere não posso deixar de discutir as restantes quatro dimensões
mencionadas e que giram em torno da qualidade e do desenvolvimento da
«Docência» e que são a «Instituição», os «Estudantes», a «Inovação curricular e
pedagógica» e os «Professores e Funcionários não Docentes» que garantem os
serviços e o funcionamento da Instituição no seu todo.
A
instituição, os professores e outros funcionários não docentes, os estudantes e
a inovação curricular e pedagógica
Em
muitos países, a perspectiva burocrática sobre a qualidade da docência coloca
em relevo, quase sempre, aspectos como o cumprimento (prazos, deveres do
trabalhador, horários), os resultados (estatísticas sobre o sucesso escolar) e
as questões económicas (quanto custa o aluno, etc.), para citar apenas estes
exemplos. Obviamente, esta perspectiva burocrática também deve ser considerada,
mas só esta óptica é claramente insuficiente para nos pronunciarmos sobre a
qualidade da docência.
Uma
visão mais profissional em relação à qualidade da docência no ensino superior,
muito provavelmente, já incluiria elementos que passam despercebidos ao cidadão
comum, como a formação contínua e o desenvolvimento profissional do professor e
de outros funcionários, o clima na sala de aula, as competências de liderança
da equipa que gere a instituição, etc., portanto, em definitivo, por aqui se
pode depreender, a qualidade da docência no ensino superior pode ser abordada
por diferentes perspectivas.
A
inovação curricular e a sua flexibilidade também têm toda a lógica de ser e
fundamenta-se, por um lado, pela própria maleabilidade do mercado de trabalho e
das profissões na medida em que estas são cada vez mais diversificadas, por
outro lado, pelo facto dos estudantes do ensino superior serem pessoas adultas
e deverem ter o direito de optar entre uns e outros conhecimentos. Coloco em
relevo este aspecto porque, infelizmente, salvo melhor opinião, com frequência,
os planos de estudo são normalmente concebidos com base nos critérios e
interesses dos próprios docentes, em detrimento dos estudantes e do País.
A
importância da inovação curricular justifica-se porque há necessidade de se
acentuar o carácter formativo dos planos de estudo, actualizá-los (mudança dos
nomes das disciplinas, revisão dos conteúdos, etc.) e reduzir a carga horária,
pois, a par de muitos estudiosos, defendo a tese de que os estudantes aprendem
mais estudando por eles mesmos do que estando largas horas dentro de uma sala
de aula.
Aliás,
em muitos países, há orientações para que as instituições do ensino superior
não tenham mais do que seis disciplinas a funcionarem simultaneamente, e para
que as horas lectivas ocupem 70%, sendo as restantes para horas de estudo e
trabalho autónomo do estudante.
Por
tudo o que acabei de expor, a crítica sobre o estado de saúde do ensino
superior em Timor-Leste veiculada por S. E. Kay Rala Xanana Gusmão parece-me
crucial e muito pertinente, pelo que, recomendo que se faça um esforço para que
todas as IES do País (pública e privadas) tomem medidas e acções para
conhecerem os estudantes, as suas preocupações e expectativas, para podermos
facultar à comunidade académica, à sociedade civil e aos decisores políticos um
conhecimento sistemático e actualizado sobre a nossa realidade académica e
assegurar a funcionalidade dos serviços de apoio e a sua qualidade através de
boas práticas, tendo sempre presente a visão complexa e multidimensional da
universidade.
*Publicado
no Jornal Tornado em duas partes, em M. AZANCOT DE MENEZES
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