Entre
declarações mais ou menos vagas e mais ou menos contraditórias, Donald Trump
disse que os EUA deveriam expandir o seu arsenal nuclear. Mas porquê? Há quem
concorde com o futuro Presidente e defenda que o país tem de estar preparado
face à “ameaça nuclear” da Rússia, mas há também quem acredite que um reforço
do arsenal nuclear poderá levar outros países a fazerem o mesmo, devido ao
chamado “efeito-dominó”. Outros há, ainda, que nem sequer reconhecem na Rússia
de Putin o inimigo nuclear que muitos apontam. O Expresso falou com três
especialistas sobre este tema
O comportamento
errático de Donald Trump na rede social Twitter não se cinge aos tweets
contraditórios sobre as armas nucleares, mas neste tema em concreto a sua
“incoerência” e “inconsistência” têm sido particularmente denunciadas.
Durante
a campanha eleitoral para as eleições presidenciais, quando questionado sobre a
possibilidade de os EUA usarem armas nucleares no futuro caso ele viesse a ser
eleito Presidente do país, Trump respondeu a John Dickerson, apresentador do
programa “Face the Nation”, da CBS News, que é “preciso ser-se imprevisível”,
embora sublinhando que só “em último caso” é que ponderaria recorrer a armas
nucleares.
Ainda
durante a campanha eleitoral, Trump terá, de acordo com Joe Scarborough, do
programa “Morning Joe”, da MSNBC, questionado várias vezes os seus conselheiros
de segurança e política externa por que razão os EUA, tendo armas nucleares,
não poderiam usá-las. Mais tarde, a sua equipa veio desmentir estas alegações.
ALEX
WELLERSTEIN: “É MUITO PROVÁVEL QUE TRUMP NÃO SE CONHEÇA A ELE PRÓPRIO”
Vários
especialistas e analistas políticos têm criticado a atitude do Presidente dos
EUA, que esta sexta-feira toma posse, em relação às armas e à ameaça nuclear,
posição que consideram “inconsistente”. É o caso de Alex Wellerstein,
especialista em história das armas nucleares e professor assistente de Ciências
e Estudos da Tecnologia no College of Arts and Letters, no Stevens Institute of
Technology, em Hoboken, Nova Jérsia.
“Não
estou sequer certo de que Trump saiba qual é o seu próprio posicionamento
nuclear. Ele parece não estar a agir de acordo com nenhuma filosofia coerente,
estratégia ou ideologia sobre as armas nucleares”, diz o especialista em
entrevista ao Expresso. “Receio que, por isso, não seja sequer possível
tentar adivinhar o que planeia fazer. É muito provável que nem Trump se conheça
a ele próprio”.
Alex
Wellerstein diz ainda que falar sobre o tema das armas nucleares implica
abordar “aspectos estratégicos, políticos e técnicos muito complexos” e que não
teve “nenhuma evidência de que Trump esteja a par destas questões básicas,
quanto mais de todas as nuances”.
MATTHEW
KROENIG: “RÚSSIA TEM MAIS OGIVAS NUCLEARES DO QUE O ESTIPULADO PELOS TRATADOS
INTERNACIONAIS”
Antigo
conselheiro de segurança nacional do candidato republicano Marco Rubio, durante
a campanha para as eleições presidenciais, e professor na Universidade de
Georgetown, em Washington D.C. (é também membro do Brent Scowcroft Center on
International Security do think tank Atlantic Council), Matthew Kroenig
sublinha, em entrevista ao Expresso, que é “difícil avaliar os planos de
um político com base em declarações que ele fez durante a campanha”.
“Quando
Trump entrar em funções e a sua equipa estiver completamente formada, vamos ter
uma noção mais clara de quais são os seus planos específicos para o país”,
garante este especialista.
Matthew
Kroenig, que foi também conselheiro de Mitt Romney nas eleições presidenciais
de 2012 e um dos 100 membros do Partido Republicano que assinaram uma carta a
condenar as declarações e opinião de Donald Trump sobre a política externa do
país durante a campanha eleitoral, foi um dos poucos especialistas que saiu em
defesa do Presidente eleito quando este escreveu na sua conta no Twitter que os
EUA “devem fortalecer e expandir fortemente o seu arsenal nuclear”.
Num
artigo publicado no “Politico”, intitulado “Trump said the U.S. should expand
nuclear weapons. He’s right”, Matthew Kroenig defende que os EUA “precisam de
uma força nuclear robusta, não para entrar em guerra com algum país, mas
precisamente o oposto: para evitar que os seus potenciais adversários usem as
suas próprias armas nucleares contra os EUA e os seus aliados”.
Um
dos argumentos recorrentes contra as armas nucleares é o de que se os EUA
reforçarem o seu arsenal nuclear isso poderá levar outros países a fazerem o
mesmo, devido ao chamado “efeito-dominó”. É precisamente isso que teme Alex
Wellerstein. “O receio é de que se os EUA começarem a desenvolver mais armas e
deixarem de exercer a pressão que exercem no sentido de limitar os diferentes
arsenais nucleares, outros países queiram fazer o mesmo”. O Japão, em
particular, “pode transformar-se num estado com armas nucleares em poucos meses
se assim o desejar – tem um poder nuclear e uma indústria aeroespacial muito
desenvolvidos, por isso não seria muito difícil para eles”.
Mas
o risco “mais real”, alerta o especialista, é que “os países comecem a
abandonar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear [TNP, em vigor desde março de
1970], fazendo com que se torne muito mais difícil chegar a um consenso
internacional em relação aos países onde a proliferação de armas nucleares pode
ser verdadeiramente perigosa, como o Irão e a Arábia Saudita”. A proliferação,
diz ainda Wellerstein, “tem tendência para resultar em mais proliferação, e se
os países não desenvolvem bombas nucleares não é porque não tenham condições ou
capacidades técnicas para isso, é porque há uma vontade política e diplomática,
um acordo, e isso não pode ser quebrado”.
Matthew
Kroenig, pelo contrário desvaloriza este cenário. “Essa é uma interpretação
completamente errada da situação. Os EUA têm uma força nuclear superior à China
desde os anos 1940 e Pequim nunca mostrou interesse em mudar isso. É a Rússia,
agora, que está a modernizar e a expandir o seu arsenal nuclear e a fazer
batota em relação às suas obrigações de controlo de armas. Ao reforçarem o seu
arsenal, os EUA não vão dar início a uma corrida ao armamento, vão simplesmente
responder às ações já iniciadas por Moscovo”, diz em entrevista ao Expresso o
especialista, que não tem dúvidas da “ameaça nuclear” que representa a Rússia –
e também a China –atualmente. “Espero que as armas nucleares nunca venham a ser
usadas, mas um dos maiores riscos para os EUA de uma eventual guerra nuclear
seria terem um arsenal fraco que levasse os seus adversários a acreditar que
podiam usar as suas próprias armas e vencer”.
Evocando
o tratado batizado de New Start (“New Strategic Arms Reduction Treaty”),
assinado por Barack Obama e o então Presidente russo Dmitry Medvedev (atual
primeiro-ministro do país), em abril de 2010, em Praga, e que veio limitar o
arsenal nuclear dos dois países a 1550 ogivas nucleares operacionais – além de
definir mecanismos de monitorização mais eficazes sobre os respetivos arsenais
– e citando o departamento de Estado norte-americano, Kroenig diz que a Rússia
possui atualmente mais 250 ogivas nucleares do que o permitido e que os EUA, pelo
contrário, têm menos 200 ogivas do que o limite estipulado.
“Moscovo
detém atualmente uma superioridade nuclear sobre os Estados Unidos de mais de
400 ogivas, o que é muito preocupante e levanta sérias dúvidas sobre se Moscovo
tenciona ou não cumprir o acordo assinado”, aponta.
Sobre
isto, Alex Wellerstein, que diz nem sequer gostar de “entrar na discussão dos
números”, questiona: “Mas será que alguém acredita mesmo que a Rússia iria
arriscar um ataque nuclear contra os EUA? Será que ter mais algumas centenas de
ogivas faz assim tanta diferença?” Na opinião do especialista, mais do que
“estarem preocupadas com números específicos, as pessoas deviam questionar-se
até que ponto uma força nuclear robusta consegue mesmo evitar ataques. Entrar
nesse jogo dos números é meio caminho andado para perder o rasto àquilo que
importa”, diz. E depois acrescenta: “Moscovo deverá ter as suas razões para
acreditar que uma ligeira superioridade numérica torna a Rússia um país mais
seguro; se isso não nos tornar a nós menos seguros, eu estou disposto a
deixá-los sentirem-se seguros”.
Os
argumentos apresentados por Matthew Kroenig foram igualmente refutados por
Steven Pifer, diretor do grupo de trabalho Arms Control and Non-Proliferation,
da Brookings Institution, num artigo posterior publicado no “Politico”. Pifer,
também membro do Center for 21st Century Security and Intelligence, da mesma
instituição, acusou Matthew Kroenig de fazer uma leitura errada dos números,
uma vez que “se olharmos atentamente para os dados percebemos que os EUA têm
arsenal suficiente para deter eventuais ameaças”, e defendeu que “não por há
por isso necessidade nenhuma de aumentar o número de ogivas nucleares”.
Confrontado
pelo Expresso com esta resposta, Kroenig limitou-se a dizer que foi
precisamente esse “julgamento errado que deixou os EUA mais fracos durante o
mandato de Obama”, mas que “felizmente a era Obama terminou e está agora a
caminho uma nova administração, que vai fazer o que está certo e garantir que
os Estados Unidos têm capacidade para se defender a si próprios e aos seus
aliados”.
“SÓ
UM PEQUENO SECTOR DA ELITE EDUCADA SE PREOCUPA COM AS ARMAS NUCLEARES NOS EUA”
“Não
votem em pessoas que têm, unilateralmente, o poder acionar armas nucleares”,
escreveu Alex Wellerstein no seu blogue “Restricted Data: The Nuclear Secrecy
Blog”, em novembro do ano passado, explicando depois que “tecnicamente, o
processo eleitoral é o único meio de controlo do Presidente”, uma vez que “toda
a ideia por trás do sistema de comando e controlo norte-americano é garantir
que o Presidente e apenas o Presidente pode autorizar uma guerra nuclear quando
quiser”, de forma “unilateral”, sem o aval seja do Congresso, seja dos
tribunais.
É
assim pelo menos desde 1946, quando o então Presidente Harry Truman aprovou,
“ao fim de nove meses de audições no Congresso, o Atomic Energy Act, que
transferiu o poder de usar a bomba atómica para as mãos do Presidente”, lembra
o especialista, sublinhando o carácter “controverso” da lei redigida meses após
os bombardeamentos nucleares em Hiroshima e Nagasaki.
Será
que os americanos que votaram em Trump não sabiam qual era a sua opinião,
coerente ou menos coerente, em relação às armas nucleares? Ou será que sabiam
mas ainda assim decidiram confiar nele? “Infelizmente, a política de armas nucleares
não é um assunto que interesse ao eleitorado americano neste momento, embora
tenha havido outras alturas em que sim, em que o assunto interessava”, responde
Alex Wellerstein.
“Atualmente,
só um pequeno sector da elite educada se preocupa com isso, e mesmo assim
preocupa-se com isso como se preocupa com muitos outros assuntos”. O
historiador não considera que o tema não tenha sido suficientemente abordado
durante a campanha eleitoral, “simplesmente as pessoas, no geral, estão mais
preocupadas com outras áreas, como a economia, o ambiente, a segurança social e
a saúde, áreas que as afetam diretamente”.
No
primeiro dos três debates televisivos, antes das presidenciais, entre Donald
Trump e a então candidata democrata Hillary Clinton (Universidade Hofstra, em
Long Island, Nova Iorque), Trump foi confrontado por Lester Holt, apresentador
da CBS responsável por moderar a conversa, com um artigo publicado pelo
“Washington Post” que dizia que Obama poderia estar a ponderar, como medida a
adotar numa fase final do seu mandato, alterar a política nuclear
norte-americana e assumir o compromisso de “no first use” para o país.
Esse
passo representaria, antes de mais, uma mudança inédita na o«posição nuclear
dos EUA, mas também o cumprir de uma promessa de um Presidente que colocou o
desarmamento nuclear no topo das prioridades da sua política externa,
nomeadamente relançando negociações com a Rússia e tentando influenciar o
tabuleiro internacional no sentido de pressionar duas das grandes potências
nucleares, o Irão e a Coreia do Norte, e que além disso venceu o Prémio Nobel
da Paz no primeiro ano do seu mandato (2009) pelos seus “esforços com a vista a
um mundo sem armas nucleares”.
Confrontado,
então, com essa hipótese avançada pelo “Washington Post”, Donald Trump garantiu
que “não atacaria primeiro” nenhum outro país numa situação de conflito, porque
“uma vez que o recurso a armas nucleares passe a ser uma realidade, está tudo
terminado”, mas não excluiu a hipótese de vir um dia a usá-las. “Temos de estar
preparados. Não posso descartar nenhuma hipótese”.
Foi
também durante a campanha que Trump sugeriu que a Coreia do Sul, o Japão e a
Arábia Saudita deveriam desenvolver as suas próprias armas nucleares para se
protegerem das ameaças da Coreia da Norte em vez de dependerem dos EUA para
isso, uma vez que o país que se prepara para liderar, e não pode continuar a
ser “o polícia do mundo”, disse o próprio numa entrevista ao “New York Times”.
“Há
de chegar o momento”, disse então Trump, “em que os EUA serão incapazes de continuar
a suportar esses custos”, porque “já não têm o dinheiro que tinham nem são a
nação rica que eram quando fez esses acordos de defesa”, além de que o arsenal
nuclear norte-americano “está atualmente muito degradado e já ninguém sabe
sequer se funciona”. Trump não deixou, porém, de sublinhar que “o maior
problema do mundo é a proliferação nuclear” e que vivemos num “mundo nuclear
assustador”.
Kingston
Reif, diretor do programa de Desarmamento e Redução da Ameaça Nuclear da
Associação para o Controlo das Armas dos EUA, considera esta sugestão/proposta
de Trump “radical e altamente perigosa”, além de ser “totalmente inédita”.
“Durante mais de 70 anos, os EUA, tanto sob administrações republicanas como
democratas, tentaram evitar de forma muito ativa que os seus aliados e
adversários procurassem meios de produzir bombas nucleares. E na maior parte
dos casos conseguiram”. Por isso é que “78% dos republicanos, 73% dos
democratas e 68% dos independentes defendem que prevenir a proliferação de
armas nucleares está no topo das prioridades do país no que diz respeito à
política externa”, diz o especialista, citando um estudo de opinião elaborado
pelo Chicago Council on Foreign Relations em 2015.
“Se
os Estados Unidos quebrarem o seu compromisso de defesa com o Japão e a Coreia
do Sul e derem luz verde a esses países para desenvolverem as suas próprias
armas nucleares, isso vai complicar e agravar a ameaça nuclear em toda a Ásia
e, em última instância, também em território norte-americano.”
Helena
Bento – Expresso – Foto: Andrew Caballero / AFP / Getty Images
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