Bancos,
cartões de crédito e Estados querem substituir todo o dinheiro público por
moeda digital, corporativa. Se isso ocorrer, haverá muito mais desigualdade,
discriminação e vigilância
Brett Scott* – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho e Antonio Martins
Brett Scott* – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho e Antonio Martins
Recentemente
me vi encarando uma máquina de venda num corredor tranquilo da Universidade de
Tecnologia Delft, na Holanda. Estava ali para fazer uma exposição na
conferência “Reiventar o Dinheiro”, mas, sofrendo de jetlag e exaustão, fui à
procura de uma Coca-Cola. A máquina tinha uma pequena interface digital
construída por uma empresa holandesa denominada Payter. Nela estava impressa um
aviso: “Apenas pagamento sem contato”. Introduzi meu cartão bancário, mas, ao
invés de receber uma Coca, recebi a mensagem: “Cartão inválido”. Nem todos os
cartões são iguais, ainda que você consiga ter um – e nem todo mundo consegue.
No
imaginário de um economista, num mercado livre ideal indivíduos racionais fazem
contratos de troca monetária em benefício mútuo. Uma parte – denominada
‘comprador’ – passa células de dinheiro para outra parte – denominada
‘vendedor’ -, que por sua vez lhe entrega bens ou serviços reais. De modo que
aqui estou eu, um indivíduo cansado procurando racionalmente por açúcar. O
mercado está diante de mim, há bebidas gasosas empilhadas numa prateleira, numa
máquina de venda que age em nome do vendedor de Coca-Cola. É um aparato
mecânico obediente que se baseia num simples contrato comercial: se você dá
dinheiro para meu proprietário, eu lhe dou uma Coca. Por que razão, então, esse
diabo de máquina não realiza esse contrato comigo? Isso é um fracasso
comercial.
Para
compreender esse fracasso, precisamos primeiro entender que vivemos com dois
tipos de dinheiro. ‘Dinheiro vivo’ é o nome dado ao nosso sistema de notas
físicas que são passadas adiante manualmente para fechar transações. Essa
primeira modalidade de dinheiro é pública. Podemos chamá-la de ‘dinheiro do
Estado.’ De fato, vivemos a experiência do dinheiro vivo como algo de uma
utilidade pública que está dada. Assim como outras utilidades públicas, ele
pode passar a sensação de sujeira e não é nada sexy – tem algumas deficiências
e aberturas para a corrupção – mas é, em princípio, de acesso aberto. Pode ser
passado pelo mais rico diretamente ao mais pobre da sociedade, ou vice-versa.
Em
paralelo a ele, temos um sistema de dinheiro digital, no qual as nossas notas
de dinheiro vivo tomam a forma de “objeto de dados”, registrados numa base de
dados por uma autoridade – um banco –, ao qual foi concedido o poder de “manter
sua contagem” para nós. Referimo-nos a isso como nossa conta bancária e, em vez
de transportar esse dinheiro fisicamente, nós o “movemos” através de mensagens
a nossos bancos – via celular ou internet, por exemplo – pedindo que editem os
dados. O dinheiro “vai” para o proprietário do seu apartamento se os
respectivos bancos, o seu e o dele, concordarem em editar suas contas,
reduzindo a contagem da sua conta e aumentando a do seu senhorio.
Essa
segunda modalidade de dinheiro é essencialmente privada, e funciona através de
uma infraestrutura controlada por bancos comerciais em busca de lucro,
hospedados por intermediários de pagamento privados – como Visa e Mastercard –
que trabalham com eles. Os registros de dados de sua conta bancária não são de
dinheiro do Estado. Sua conta bancária registra, ao invés disso, promessas
emitidas por seu banco privado para você, e que lhe prometem, se desejar,
acesso ao dinheiro do Estado. Ter “500 libras” em sua conta no banco Barclays
significa na verdade que o “Barclays PLC promete a você o acesso a 500 libras”.
A rede de caixas automáticos é o principal meio pelo qual você converte essas
promessas de bancos privados – “depósitos” – no dinheiro do Estado que foi
prometido para você. O sistema digital de pagamentos, por outro lado, é um modo
de transferir – ou reassegurar – entre nós essas promessas bancárias.
Esse
duplo sistema nos permite comprar pizza num restaurante com dinheiro digital
bancário privado, mas podendo sempre recorrer ao dinheiro público do Estado
retirado de um caixa eletrônico, se o sistema de cartão de débito do
proprietário sofrer qualquer acidente. Essa escolha parece justa. Conforme o
momento, podemos achar mais útil esta ou aquela modalidade. Ao mesmo tempo em
que você lê isso, contudo, arquitetos de uma “sociedade sem dinheiro vivo”
estão trabalhando para acabar com a opção de recorrer ao dinheiro do Estado.
Eles desejam privatizar completamente a movimentação de células de dinheiro,
empurrando os bancos e os intermediários de pagamentos privados para todas as
interações entre compradores e vendedores.
A
sociedade sem dinheiro vivo – que deveria ser denominada, mais precisamente, de
sociedade de pagamentos bancários – é com frequência apresentada como
inevitável, resultado do “progresso natural”. Esta alegação é tanto ingênua
quanto desonesta. Qualquer sociedade futura sem dinheiro vivo e com pagamento
bancário será resultado de uma guerra deliberada ao dinheiro, movida pela
aliança de três grupos de elite com profundos interesses em vê-la emergir.
O
primeiro grupo é o do setor bancário, que controla o sistema fundamental de
dinheiro digital fiat com o qual nosso sistema público de dinheiro vivo compete
atualmente. Os bancos se irritam porque as pessoas usam de fato o direito de
converter seus depósitos bancários em dinheiro do Estado. Isso os força a
manter funcionando a rede de caixas eletrônicos. A sociedade sem dinheiro vivo,
a seus olhos, é uma utopia em que o dinheiro não pode sair – ou mesmo existir –
fora do sistema bancário, mas apenas ser transferido de banco para banco.
O
segundo é o da indústria privada de pagamentos – os Visa e Mastercard da vida –
que lucram ao manter a infraestrutura que serve ao sistema bancário,
racionalizando o processo pelo qual transferimos dinheiro digital entre contas
bancárias. Essa indústria tem boas razões para pressionar o sistema para
remover a opção de dinheiro vivo. Transações em dinheiro vivo são
pessoa-a-pessoa, não requerem intermediários, e são portanto transações em que
a Visa não pode meter a mão.
A
terceira – talvez ironicamente – é a do Estado, e de entidades quase-Estado
tais como bancos centrais. Elas estão unidas ao setor financeiro para forçar
todo o mundo a comprar nessa sociedade de pagamentos bancários privatizados,
por razões de monitoramento e controle. O sistema de dinheiro bancário forma um
panóptico que possibilita – em teoria – que todas as transações, boas ou más,
sejam gravadas, espionadas e analisadas. Além do mais, a natureza “off line” do
dinheiro vivo significa que ele não pode ser alterado ou congelado remotamente.
Isso atrapalha os bancos centrais na implementação de políticas monetárias
“inovadoras”, tais como configurar taxas negativas de juros, que lentamente
reduzem os depósitos, para coagir as pessoas a gastar.
Os
governos não declaram, de fato, essa agenda monetária. Ela não é
suficientemente cativante. Em vez disso, as armas-chave usadas pela aliança são
táticas mais clássicas, de choque e pavor. Dinheiro vivo é usado por
criminosos! As pessoas compram drogas como dinheiro vivo! É a economia
paralela! Ela sustenta a evasão fiscal! A capacidade de apresentar controle como
proteção baseia-se em constantes chamadas para imaginar um inimigo externo, o
terrorista ou a máfia. Esses gritos de pânico moral contrastam com as
publicidades brilhantes e sorridentes do pagamento digital. A sociedade sem
dinheiro vivo emerge como um nascer de sol futurista, que nos limpa dessas
perigosas notas sujas com raios de salvação higiênica, conveniente, digital.
Apoiando
essa aliança central está um corpo auxiliar de acadêmicos, economistas e
futuristas do establishment, que vivem em subúrbios frondosos, voam de classe
executiva para fazer palestras em conferências de tecnologia, atendidos por um
bando de bajuladores da mídia e jornalistas de inovação que pregam o evangelho
da ausência de dinheiro. “The Curse of Cash” (A Maldição do Dinheiro Vivo, em
tradução livre), por Kenneth Rogoff, professor de economia de Harvard, foi
indicado ao prêmio do Ano pelo Financial Times e o McKinsey Business Book, sem
dúvida acompanhado de convites para conferências patrocinadas pela indústria
financeira em hotéis cinco estrelas.
O
terror psicológico está funcionando. A Holanda – onde encarei minha máquina de
vender produtos – tornou-se uma frente chave na guerra contra o dinheiro vivo.
Aqui o dinheiro está passando a ser visto como um estrangeiro ilegal em fuga,
cada vez mais excluído da economia formal, atraindo olhares de suspeita de
vendedores. Avisos dizem ‘Apenas cartão’. Quem é o Cartão? O Cartão é um
socialite glamuroso, bem-vindo às lojas. O Cartão é superior. Observe os
anúncios dos bancos mostrando seus acessórios para o Cartão. Ninguém está
fazendo acessórios para o Dinheiro Vivo.
A
linha de frente dessa aliança está agora se infiltrando nos países mais pobres.
Na Índia, a recente “desmonetização” foi uma retração brutal das notas de
rúpia, de um dia para o outro, feita pelo primeiro ministro Narendra Modi para
disciplinar a ‘economia paralela’. Foi um exercício para chocar os indianos
mais pobres, que dependem de dinheiro vivo e com frequência não têm acesso a
contas bancárias. Lançada originalmente, em termos populares, como uma
tentativa de barrar a corrupção, a mensagem foi depois ironicamente alterada
para transformar a ausência de dinheiro vivo numa forma de criar progresso
econômico para os pobres da Índia.
Essa
mensagem recebe credenciais humanitárias da Better Than Cash Alliance (Aliança
Melhor do que Dinheiro Vivo, em tradução livre), que promove ‘a mudança de
pagamentos em dinheiro para pagamentos digitais para reduzir a pobreza e levar
ao crescimento inclusivo’, e que tem como parceiros-chave a Visa, o Mastercard
e a Citi Foundation. A ação de Modi foi também precedida pelo início do
programa Cashless Catalyst (Catalisador da Ausência de Dinheiro Vivo, em
tradução livre), “uma aliança entre o governo da Índia e a Usaid para expandir
os pagamentos digitais na Índia”, apoiado por um panóptico de empresas de
pagamento eletrônico. Essas alianças oficiais de Estados, corporações e
acadêmicos são impressionantes. Na Índia, elites urbanas endinheiradas que
aplaudiram as ações de Modi podem, com certeza, justificar isso apontando o
livro de Rogoff indicado pelo Financial Times.
Rogoff,
contudo, pareceu assustado e escreveu artigos afirmando que estava defendendo
acabar com o dinheiro vivo apenas de economias avançadas, com sistemas
bancários avançados. Ó céus. O economista superinfluente e politicamente
poderoso de Harvard lança um livro antidinheiro e fica preocupado quando países
mais pobres o levam a sério?
A
tentativa de apresentar a sociedade sem dinheiro vivo e com pagamentos
bancários como um benefício para o povo marginalizado é no mínimo débil. Se
você é um habitante vulnerável da economia informal, um prostituto fora da rede
ou um trabalhador precário de baixa renda, bancos e intermediários de
pagamentos têm pouco interesse em dar prioridade a você. A sociedade de
pagamentos bancários não irá processar a atividade que acontece nas fendas
periféricas do sistema em que se baseia seu meio de subsistência. Na verdade, a
intenção é fechar esses espaços. Isso pode ser caracterizado como “progresso”,
mas da mesma forma podemos dizer que você está sendo empurrado para fora da economia
numa ação de lavagem econômica. A pretexto de destruir a “economia paralela”, a
subclasse, os invisíveis, os excêntricos e os resistentes serão coercitivamente
encurralados nas mãos do sistema Estado-corporação.
Nâo
tenho nenhum amor especial pelo dinheiro. Não me importo realmente com os
devaneios nostálgicos sobre a bela estética das notas de dinheiro, sua textura
ou importância cultural num sistema de mercado – ainda que compreenda como isso
é importante para muitos. Também não me comovo com a história pedante do
dinheiro, se quem lançou as primeiras notas foi a dinastia chinesa de Tang ou
de Song. O que me preocupa é a insensibilidade insondável da máquina de vendas,
esta mesma que acaba de bloquera minha entrada no livre comércio.
As
antigas máquinas de venda automática não eram assim. Elas tinham um pequeno
orifício para moedas, que permitiam até a um mendigo em farrapos converter sua
renda mínima em sustento. Olhe a máquina atual de perto. São, na verdade, duas.
O aparelho Payter fundido em seu corpo não trabalha para o vendedor de cola.
Trabalha para as corporações de pagamento. Você sabe, o vendedor de cola tem
uma conta bancária, mas há muitas pessoas, com muitas contas em muitos bancos,
aproximando-se da máquina de vendas. Estes bancos precisam identificar qual de
seus correntistas quer transferir dinheiro – e quanto – para que conta, de que
outro banco. O aparelho está lá para entregar minhas informações de cartão às
linhas de transmissão do sistema de pagamentos do cartão. Lá, elas serão – em teoria,
e mediante uma pequena tarifa – roteadas para facilitar a transferência de
dados de dinheiro de minha conta para a conta do vendedor.
Já
não se trata de um acordo entre eu e o vendedor. Estou agora lidando com um
complexo de terceiras partes desconhecidas, de atravessadores de dinheiro em
busca de lucro, que se colocam entre nós para agir como facilitadores do fluxo
de dinheiro, mas também como potenciais controladores. Se um controlador não
quer negociar comigo, eu não posso fazer negócios com o vendedor. Ele tem a
capacidade de confundir, monitorar ou estabelecer condições sobre aquele rito
crucial e glorioso do capitalismo – a transferência de dinheiro, como
contrapartida à transferência de bens. Este aparelho inócuo exala indferência
mecância, obedecendo apenas a patrões invisíveis e distantes, executando
algoritmos invisíveis, em caixas pretas invisíveis que não gostam de mim.
Se
optamos por nos referir aos pagamentos bancários como “sem dinheiro”, então
deveríamos nos referir aos pagamentos em dinheiro como “sem bancos”. Porque é
isso que o dinheiro físico é, além de ser, hoje, a única coisa que se interpõe
entre nós e um sistema monetário completamente privatizado.
Como
no caso das privatizações anteriores, ouviremos os “especialistas” apropriados
da TV argumentar que se as corporações de pagamento digital não trabalharem em
favor do público, serão superadas por sistemas privados melhores. Muito bem.
Quando você viu pela última vez um competidor credível?
O
máximo que podemos esperar, portanto, é um oligopólio benigno de corporações de
pagamento, altament exposto às aspirações geopolíticas dos Estados em que estão
instaladas. O Estado chinês estimulou a criação da União de Pagamentos da China
(China UnionPay) precisamente porque não quer as megacorporações
norte-americanas instaladas como controladoras das transações feitas por
cidadãos chineses.
Ao
construir uma defesa, há sempre duas opções. Ou você bloqueia um ataque, ou
lança um contra-ataque estratégico, muitas vezes expresso na fórmula segundo a
qua “o ataque é a melhor defesa”.
Pela
primeira estratégia, você concentra-se em afirmar que os argumentos contra o
dinheiro são exagerados, imprecisos ou incompletos. Exageros e imprecisões
estão presentes nas tiradas contra o dinheiro, mas a incompletude é crucial.
Por exemplo, digamos que você concorde que os criminosos preferem dinheiro.
Isso significa que “deveríamos abolir o dinheiro”? Banir tudo o que os
criminosos preferem produziria quase certamente, para todos, uma existência
constrita e sufocante. Parabéns, acabamos com o crime, mas às custas de
liquidar também a privacidade e o espaço livre para a criação. O fim do crime
vem acompanhado por um Estado de vigilância insuportável, sempre presente ao
seu lado, imiscuido-se em seus momentos mais íntimos, tratando-o como uma
criancinha em quem não se pode confiar. Desfrute esta vida.
O
segundo modo de defesa ofensiva envolve atacar a alternativa proposta.
Afirmamos que a nova sociedade de pagamentos bancários não resolve velhos
problemas – o crime torna-se digital e sua conta é sequestrada com mais
facilidade que sua carteira era furtada. Ainda pior: esta sociedade introduz
uma vasta gama de novos problemas não mencionados de forma explícita no
material de marketing do Mastercard. Vamos revelar o que está escrito em tinta
invisível: alguém mencionou que, ao excluir a possibilidade de fazer transações
com dinheiro tornou-se possível rastrear tudo o que você faz e reprimi-lo?
Parabéns, quem não deve, não teme!
Sim,
também posso usar táticas de medo. Posso argumentar que a extinção do dinheiro
nos aproxima do mais poderoso e automatizado sistema de controle financeiro
pelos Estados e corporações que já existiu. Muito poucas pessoas parecem
compreender ou se importar com isso. Como um sapo fervido aos poucos, não
parecemos nos das conta do processo que nos aprisiona na dependencia diária de
uma infraestrutura alienadora e opaca, capaz de nos tornar cada vez mais
subservientes a processos burocráticos que não enxergamos.
Talvez
eu precise acionar o choque e pavor. Talvez eu possa martelar um argumento
sobre como, numa sociedade sem dinheiro, os terroristas podem atingir as redes
de transmissão elétrica para provocar caos econômico em regiões inteiras.
Não.
Minha principal defesa do dinheiro público será simples e intuitiva. Ainda que
análogico e não sexy, ele é resiliente. É fácil de usar. Quase não requer
estrutura sofisticada. Não está sujeito a falhas algorítimicas de programadores
incompetentes. E não deixa rastros de dados que serão usados para projetar, em
nossa existência quotidiana, as aspirações e neuroses de tecnocratas sem rostos
e analistas de negócios. Ele vem com criminosos – mas, atenção, é o velho
capitalismo, e não a versão do sistema na fase de vigilância total descrita no
Minority Report. E pergunte a si mesmo: você realmente quer viver neste tipo de
sociedade sem a chance de comprar drogas? Acredite, você precisará de algo para
amenizar as dores existenciais.
*Brett
Scott é ativista, ex-corretor financeiro e autor de “O Guia Herege para as
Finanças Globais: Hackeando o Futuro do Dinheiro" (Pluto Press).
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