quinta-feira, 23 de março de 2017

“O HOMEM É O ÚNICO ANIMAL QUE SE MATA A SI PRÓPRIO”


O escritor angolano Pepetela ainda mantém uma réstia de otimismo, mas confessa-se desencantado com os acontecimentos globais do último ano. "De repente, parece que tudo de mau pode acontecer", afirmou ao JN.

No Festival Literário da Madeira, Pepetela, autor de algumas das obras mais marcantes da literatura angolana do derradeiro meio século, foi convidado a falar do binómio realidade/utopia, a partir dos seus próprios livros, e do impacto do tempo na manutenção dos sonhos. Foi por aí mesmo que começámos.

No seu livro "Yaka" escreve a dada altura que "queremos mudar o mundo, mas não conseguimos mudar-nos a nós próprios". Afinal, é mais fácil mudar o mundo ou a nós próprios?

Francamente, estão muito ligados. Não é possível fazer uma coisa sem a outra.

A frase expressa algum desencanto.

Gostava de ser mais otimista, mas, nos últimos tempos, o género humano parece estar a perder algumas qualidades. Este último ano foi estranho. De repente, parece que tudo de mau pode acontecer, embora não vá acontecer. O Homem é o único animal que se mata a si próprio. O leão, a pantera, mais nenhum mata um semelhante. Talvez haja algo de genético aí. Como a ciência, tem avançado tanto, é possível que altere um gene qualquer e consiga tornar o Homem mais humano. É um género que tem perdido a sua dimensão humana. É, seguramente, uma fase, pelo que espero assistir ainda a um ressurgimento da importância dos valores e dos ideais.

A "Geração da Utopia" sofreu um banho de realidade?

Infelizmente, sim. Não que, pessoalmente, tivesse enormes expectativas. Ao longo dos meus livros fui tendo oportunidade de exprimir algumas das dúvidas que sempre tive.

É inevitável que a utopia se transforme em amargura com o passar dos anos?

Precisamos de utopias para atingir o possível. A realidade mostra-nos os limites da utopia. Se não acreditarmos em algo que mobilize as pessoas ficamos estagnados.

Faltam sonhos e ideais à atual geração de jovens?

De um modo geral - há sempre muitas exceções, felizmente -, tenho a ideia que os jovens que hoje têm 18 ou 20 anos adotaram o modo de vida norte-americano. É a influência da globalização e do capitalismo extremo. O ideal supremo de hoje é ter sucesso e, se para o atingir for necessário passar por cima dos outros, é isso que se fará. Sempre fui um otimista. Achei que, com as novas gerações, tudo iria ser melhor. Mas afinal está a ser pior.

A sua geração não tinha o mesmo apego aos bens materiais?

Não. Quase todos éramos pobres, vínhamos de famílias sem recursos, e vivíamos com o mínimo. Não aspirávamos a muito mais. Achámos que era a partir dessa base que todos iriam ter um pouco mais. Havia já na altura sinais de que havia quem quisesse mais. Mas eram benefícios muito pequenos, como ter alguém que lhe carregasse a mochila. Se tivesse esse benefício, talvez hoje estivesse livre dos problemas de coluna de que sofro...

A justiça social, uma das grandes reivindicações da independência, não ficou aquém do desejável?

Apesar de os angolanos sentirem hoje que já não sofrem as injustiças do sistema colonial, hoje há uma maior diferenciação social. E agora, ao contrário do que acontecia há 50 anos, as pessoas não aceitam resignadas essa fatalidade. Há mais instrução - não confundir com educação - e as pessoas estão conectadas com o Mundo.

Quando, há mais de meio século, combateu pela independência e pela liberdade imaginou que elas seriam assim, como acabaram por revelar-se?

Já na altura da independência alertava que a realidade não seria exatamente como tínhamos idealizado.

A relação dos intelectuais com o poder nem sempre termina da melhor forma. Orgulha-se de ter saído na altura certa?

Fico é satisfeito por ter saído. Ainda assim, durou uns três anos.

Teria construído a obra que segurou se tivesse continuado a desempenhar funções governativas por muito mais tempo?

Seguramente que não. Até porque a disponibilidade teria sido muito menor. Queria escrever e não conseguia. Se fosse poesia, talvez ainda conseguisse. Agora, o romance exige continuidade, a garantia de que no dia seguinte vamos fazer o mesmo. Basta ver o que publicaram os colegas da minha altura que continuaram ligados a cargos.

O poder das armas ou o poder das palavras: qual deles é o mais eficaz?

A arma é mais poderosa no instante. A longo prazo, é a palavra. Os conceitos e os valores que as palavras transmitem perduram mais tempo.

Angola sempre foi um país de grandes contadores de histórias. Esse imaginário contribuiu para a decisão de dedicar-se à escrita?

Sim, sobretudo numa fase inicial. Sempre disse que as histórias estavam na rua. Basta ouvi-las e transpô-las, o que também é uma forma de transformação. Hoje, a minha mulher representa as minhas antenas. Chega a casa e diz-me tudo o que viu. Conta-me episódios que presenciou que podem vir a dar origem a personagens ou situações. É sobretudo nas zonas rurais que se mantém essa arte de contar. Era quase uma escola.

É um legado que pode não ter continuidade com as novas gerações?

Pode. Aliás, começa já a notar-se nos escritos dos mais jovens, a que eu chamo, também para chatear, de literatura de rap. Nada tenho contra, mas já não é a minha batida. Nota-se uma certa pressa na escrita, o que vem das novas tecnologias Qualquer dia escrevem-se livros com emojis.

Já lamentou várias vezes a perda de importância dos livros na sociedade angolana. Não seria expectável que, com o fim da guerra, a literatura tivesse outro papel?

Os livros sofrem com a concorrência dos outros meios, da televisão ao computador. Haverá certamente autores que, em vez de escreverem livros de contos ou romances, preferem escrever no telemóvel e partilhar isso de imediato com mil ou dez mil pessoas.

Quando se tem uma obra tão longa, cada novo livro é uma responsabilidade?

Estou a escrever menos. E, quando termino um livro, fico mais tempo antes de abordar um outro. Quando estou muito tempo sem escrever começo a sentir-me mais mal humorado. Muitas vezes, são as pessoas que nos rodeiam que nos incentivam. Fico meses sem escrever nada. Dantes não era assim. Tinha necessidade de escrever, de dizer coisas.

Vê-se bem no papel de patriarca da literatura angolana?

Isso é para o Luandino, o Arnaldo Santos... Não me sinto mal na posição de dar conselhos a novos autores e muitas vezes faço mesmo questão de apresentar os seus livros. É preciso um empurrão inicial. Os escritores têm essa responsabilidade. No entanto, os escritores angolanos raramente o fazem. Não por culpa sua, mas porque as escolas não o fazem.

Mesmo universidades?

Sim, é um pouco escandaloso. Era importante para o escritor saber a pulsão dos leitores, mas também para os alunos conhecerem quem escreve os livros que leem.

As relações entre Angola e Portugal, sobretudo no plano político e diplomático, têm sido marcadas por alguma tensão nos últimos tempos. As feridas ainda não sararam por inteiro?

Se compararmos com as relações de alguns países colonizadores e colonizados, como a Argélia e França, vemos que a situação entre Portugal e Angola é incomparavelmente melhor. Há momentos melhores e piores. Assim como há pessoas de ambos os lados que gostam de envenenar as relações. Quando me vêm falar de um novo foco de tensão entre os dois países, digo para virem falar comigo um mês depois. Nessa altura já ninguém se lembra.

A cultura pode ser um desbloqueador?

Sim, também como um elemento de apaziguamento entre ambos os lados. Por outro lado, os 40 e poucos anos que passaram desde a independência não são nada, sobretudo para um país com uma História tão longa como Portugal. Mesmo com Espanha, o grande inimigo histórico de Portugal, os problemas agora envolvem barragens e centrais nucleares, mas são resolvidos nas mesas de negociações. Claro que há militares portugueses e angolanos que ficaram marcados. É inevitável. Mas é algo que já não vai passar para as gerações seguintes. Sei que os angolanos gostam dos portugueses e tratam bem os que lá estão. De vez em quando lá vem um editorial mais exaltado do "Jornal de Angola", mas isso nada representa.

Sérgio Almeida – Jornal de Notícias

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