APRENDENDO
A PARTIR DO HÚMUS CONTRADITÓRIO DA ANTROPOLOGIA E DA HISTÓRIA ANTIGA E
CONTEMPORÂNEA DE ANGOLA E DE ÁFRICA
Martinho Júnior, Luanda
1-
A campanha pré-eleitoral colocou os primeiros termómetros na sociedade
angolana, começando a mostrar o que os partidos têm para dizer e fazer,
aproveitando para novas energias e sinergias que nos próximos anos há que
(continuar a) cultivar.
Há
uma questão entre algumas outras de importância pedagógica e vital, que me
parece todavia dever ser equacionada precisamente nesta altura, por todos os
concorrentes ao exercício do poder e deve estar bem presente, ainda que
subjacente a todos os argumentos e discursos, bem como a todos os esforços de
mobilização humana: para a construção da paz, há que aprender e muito com o
conhecimento contraditório apreendido a partir do húmus da antropologia e da
história antiga e contemporânea de Angola e de África.
De
facto, as sucessivas guerras que atingiram Angola desde a década de 60 do
século XX, as da descolonização, as que tiveram a ousadia de desafiar e vencer
o “apartheid” e a do choque neoliberal, tiveram um protagonista
central, cujo curriculum, cuja trajectória e cuja interpretação sócio-política,
antropológica e ideológica em relação ao ambiente humano é, pela contradição,
um manancial de ensinamentos a não desprezar, para aqueles que querem hoje
transformar as armas em arados, construindo a paz em Angola e em África, com
toda a sabedoria e sentidos colocados no âmago duma progressista geoestratégia
para um desenvolvimento sustentável!
2-
Savimbi é pela contradição e pela leitura de seu próprio trajecto (des)umano,
(des)estruturante, (des)respeitador da Mãe Terra (inclusive pelas suas leituras
de carácter físico-geográfico) e retrógrado, um inusitado professor onde os construtores
da paz devem ir buscar uma reinterpretação saudável e criativa na construção da
identidade nacional, da independência, do exercício da soberania e de tudo o
que há paz diz respeito num horizonte futuro de séculos!...
Passo
a lembrar da sua trilha mercenária em relação a Angola que em síntese se resume
no seguinte:
Para
servir colonialismo, “apartheid” e por fim assumir o choque
neoliberal, ele conheceu (até por razões de sobrevivência), a relação homem –
espaço vital – água interior – ambiente físico-geográfico como poucos, sendo
esse um dos segredos subjacentes à sua longevidade guerrilheira e
suas “catapultas”, ainda que essa guerrilha fosse tão venenosamente
subversiva para Angola e para África.
-
O colonialismo (entre 1968 e 1974), instalou-o junto às fontes do Lungué Bungo
(Muangai), em plena REGIÃO CENTRAL DAS GRANDES NASCENTES em Angola,
condicionando-o a fim de subverter os esforços penetrantes das guerrilhas do
Movimento de Libertação em toda a sua Frente Leste…
Simultaneamente
permitia-lhe manobra de rectaguarda numa Zâmbia pasto da ambiguidade e das
filtragens obtidas pelos esforços da inteligência do baluarte fascista e
colonial na África Austral…
Era
o tempo-clímax da PIDE/DGS!
-
O “apartheid” (entre 1975 e 1991), instalou-o no sudeste angolano,
como se o fizesse disponibilizando em seu proveito a sede de água dum nómada
saído do forno do Kalahári, condicionando-o e mobilizando-o pela sua disposição
de conquista na direcção, desde logo, da terra fértil matriz da água, a REGIÃO
CENTRAL DAS GRANDES NASCENTES…
Simultaneamente
e como rectaguarda, era-lhe propiciado território do Sudoeste Africano,
Namíbia, que o “apartheid” teimosamente ocupava enquanto colónia, à
revelia de todas as decisões da ONU e da OUA, fazendo-o fluir na direcção da
fonte original do Cubango (Okawango)…
Era
o tempo-clímax da BOSS/NIS!
-
O choque neoliberal (entre 1992 e 2002), manipulando-o em Angola por via do
domínio sobre os diamantes (o “interior” e o “autóctone”),
contra os que na sua interpretação tinham como recurso o petróleo
(o “litoral” e o “crioulo”), instalou-o mesmo no Andulo, onde o
seu poder se podia mais facilmente alastrar a toda a REGIÃO CENTRAL DAS GRANDES
NASCENTES, como uma plataforma para a tomada de poder em Luanda…
Simultaneamente
tinha como rectaguarda o Zaíre, onde um regime decrépito, ele mesmo
identificado com o poder do “lobby” dos minerais e
de “cartel” dos diamantes, entrava já em franca decadência,
degenerescência e decomposição, condicionando-o e tirando partido de seus
tradicionais tentáculos no Cassai e no Cuango, em direcção ao Cuanza…
Era
o tempo-clímax da CIA!
3-
De facto para qualquer guerrilha em África, há uma interpretação antropológica,
histórica e físico-geográfica que a socorre em função das suas necessidades
operativas (e nos socorre hoje aos angolanos em função da paz), que advém da
impenetrabilidade do tempo e da opacidade do continente, assim como das
contradições e divisões semeadas pelo colonialismo,
pelo “apartheid” e pelo império da hegemonia unipolar.
As
lutas para dominar espaço vital e acesso à água interior, foram lutas que
acompanharam a lenta deslocação das mais diversas comunidades em África, século
após século, lutas que reinterpretaram (e reinterpretam) o ambiente
físico-geográfico em proveito da implantação dos conquistadores, pelo que
a “guerra da água” não é uma questão a colocar no futuro, como
afirmam aqueles que esvoaçam como abutres sobre o corpo inerte…
Em
África não há nómada algum que não tenha como miragem o acesso ao oásis, à água
interior, seja ela lago, ou rio, por muito insignificantes que eles sejam e
todas as guerrilhas, as de Libertação como as guerrilhas retrógradas que
dividem e impossibilitam o renascimento do continente-berço, necessitam para
sua própria sobrevivência de espaço vital e de acesso à água interior.
No
preciso momento em que em África se pretende erguer um “muro
verde” que impeça a progressão do deserto quente do Sahara e do inóspito
Sahel, em direcção ao sul, em direcção às savanas tropicais, às regiões
equatoriais, e à maior concentração interior de água (bacias do Nilo, do Congo
e do Zambeze, bem como da região central dos Grandes Lagos), o fundamentalismo
islâmico e o que o projecta a partir do exterior, desenvolve-se dentro ou
nas proximidades desse espaço vital, desse “muro verde”: o AQMI, (Al Qaeda
do Magrebe Islâmico) a oeste, o Boko Haram (a “educação ocidental não
islâmica é um pecado”) junto ao Lago Chade (centro), o Seleka (coalizão de
milícias maioritariamente islâmicas) na República Centro Africana (ainda no
centro e nas margens a norte da bacia do grande Congo) e o Al Shabaab
(Movimento de Resistência Popular na Terra das Duas Migrações) na Somália, a
leste.
Mesmo
o Lord’s Resistence Army, tendo a ideologia dum fundamentalismo cristão, é
suportado pelo devastado Sudão e instalou-se também no centro do “muro
verde”, nas proximidades dos Grandes Lagos jogando com as fronteiras do Uganda,
da RDC, da República Centro Africana, do Sudão do Sul, ou do próprio Sudão!
A
Conferência de Berlim, demonstra que o colonizador e os imperialistas souberam
deslindar os segredos mais abrangentes da impenetrabilidade e da opacidade de
África de forma a colocá-los à disposição dos interesses inerentes à revolução
industrial, conforme desde logo os ensinamentos recolhidos pelos
pioneiros “sertanejos”, que ao seu serviço penetraram até ao miolo do
continente, a fim de por outro ado tirar o melhor proveito das vulnerabilidades
dos africanos.
As
quedas do Zambeze foram assim denominadas Quedas de Vitória!...
Quando
o império britânico delineou seu mapa “vermelho” seguindo os
meridianos (por contraposição ao mapa “cor-de-rosa” português que
seguia os paralelos nas proximidades do Trópico de Capricórnio), fê-lo do Cabo
ao Cairo!
É
lógico que a divisão que protagonizaram nessa Conferência, nada tinha a ver com
o contexto dos colonizados, nem tinham como referência a antropologia cultural
dos povos africanos, nem as questões que se colocavam em África face aos
espaços vitais, nem os factores humanos e outros que estão inerentes ao acesso
à água interior, nem às questões que se prendiam (e prendem) à interpretação
físico-geográfica com os olhos e as sensibilidades do sul.
De
certo modo ainda hoje se vai reflectindo o que foi espelhado a muito longo
prazo nessa Conferência de finais do século XIX, quando alguns afirmam que a
guerra por causa da água, é uma questão que ocorrerá no futuro, ou quando fazem
a guerra para melhor subverter os potenciais esforços de renascimento em
África!
4-
Começar a desmistificar tudo isso, é um dos objectivos de “Séculos de
solidão” em que sou coautor.
Ao
longo dos últimos anos do semanário “Actual” muitas questões que
pavimentaram esses “Séculos de solidão” foram publicadas “a
quente” e religiosamente guardadas, a fim de hoje ter sido possível surgir
o livro, mas seria errado aos autores ficarem-se por aí, tendo em conta a
abrangência de factores que contribuem para determinar a guerra quanto a paz no
continente (e não só em Angola).
Angola
é em relação a África um microcosmos onde tudo o que em África acontece se vai
reflectindo e vice-versa.
Num
continente que foi secularmente impenetrável e opaco, para quem chegasse de
fora, bem no seu eixo, a dialéctica entre o deserto e a floresta alimentou e
alimenta todas as movimentações e disputas entre comunidades, por que
basicamente foram e são conflitos latentes entre nómadas e sedentários, entre
pastores de gado e agricultores, mais recentemente entre islamizados e
cristãos, empurrando para o vazio até os autóctones que desenvolveram originais
culturas, como os bosquímanes nos desertos do sul.
Essa
plasticidade humana tem sido utilizada para fazer a guerra… mas com
independência e a soberania emergente de Angola, que alimenta a necessidade de
Luta contra o subdesenvolvimento enquanto seguimento lógico da Luta de
Libertação, é um indispensável nutriente para a sustentabilidade da paz!
A
sustentabilidade da paz bebe numa profundidade que, conhecida pelos que
impuseram antes colonialismo e “apartheid”, procuram instrumentalizar hoje
esse velho domínio traduzindo-o nos termos de neocolonialismo e dos interesses
inerentes ao império da hegemonia unipolar, de forma a tornar inviáveis as mais
legítimas aspirações dos povos africanos em relação ao seu próprio futuro!
África
deve elaborar as capacidades inteligentes face aos riscos e desafios que se
apresentam e realizar a leitura justa relativa aos fenómenos seculares da sua
própria antropologia cultural e da história dos seus povos, por que isso deve
ser uma base incontornável para se poder avançar com o renascimento africano,
numa geoestratégia apta a criar o desenvolvimento sustentável.
Em
África, se essa leitura feita lógica com sentido de vida, for determinada e
levada a cabo com decisões adequadas e progressistas, plenamente identificadas
com os povos, vai-se poder finalmente pôr fim, com inteligência, a mobilização
de imensos recursos e de imensas vontades, aos séculos de solidão e às últimas
densidades retrógradas que, no caso de Angola, arrastaram até 2002 o país para
o vazio do capitalismo neoliberal!
*Martinho
Júnior, SOLDADO DO MPLA
Imagens: Mapas
que nos permitem avaliar desertos, florestas, climas, cobertura vegetal, o
projecto do “muro verde” na tentativa de fazer parar a expansão do
Sahel para sul (sintomaticamente é nessa faixa onde as guerrilhas mais
fundamentalistas em África estão neste momento a actuar), os primeiros fluxos
de hominídeos no berço da humanidade e os últimos processos de descolonização.
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