O
que faremos com a dor e com a revolta? Esta sirene está a tocar há muito,
escreve Pedro Santos Guerreiro
Pedro
Santos Guerreiro | Expresso | opinião
Entre
o choque e a dor mora a revolta. Contra quem, contra o quê, contra um raio numa
trovoada seca? Já é tarde e ainda é cedo, enquanto se contam cadáveres não é
consolo pedir cabeças, é só mesmo revolta, esse instinto humano de pedir
consequência à causa. Mas que causa foi a deste fim de primavera que possa não
ser de novo causa no verão? Neste verão, nos próximos? Façamos desta revolta
uma conversa longa, não um grito espasmódico que morra no eco que deslize nas
montanhas ardidas.
Seis dezenas de mortes contadas em 24 horas. Comparamos porque precisamos de escala e constatamos que esta é a maior mortandade sabe-se lá em quantas décadas. Maior que outros fogos fatídicos, maior que quase todos os ataques terroristas recentes na Europa, maior que a tragédia de Entre-os-Rios. Entre os fogos dá-nos esta raiva de nos parecer que todos os anos marchamos sobre uma cadência de piras e de compromissos políticos de mais dinheiro, de mais leis, de mais homens, de mais prevenção, de mais daquilo que é sempre de menos. A dor imobiliza. O que nos mobilizará?
A dor, a dor… a dor há de dispensar-nos com o tempo da tristeza, a nós que vemos de fora, mesmo que estejamos todos de olhos postos na calamidade pelas imagens da televisão, dos drones, dos telemóveis, dos fotógrafos, mesmo que ouçamos todos os relatos, relatórios, comentários, mesmo que estejamos a ler todas as notícias e nas reportagens escritas sintamos a catástrofe contada pelos olhos dos repórteres. Ter os olhos abertos serve para ver e tentar compreender. Ter os olhos abertos serve para não termos de fechar os olhos e confrontar uma dor maior: a reportagem que cada um de nós de consegue para si mesmo fazer ao imaginar aqueles automóveis sitiados entre chamas numa estrada entre pinheiros, chocando uns contra os outros em pânico pela fuga, com aqueles que dali a nada morrerão carbonizados gritando por socorro, por desespero, por Deus, pela mãe, pelos filhos, por si, pela vida, pela vida final que verte pelos olhos a única esperança de água, as minúsculas lágrimas com o núcleo de cada vida comida pela labaredas infernais. Aqueles gritos que não ouvimos não nos saem da cabeça, não hoje, não agora, e que exista um Deus que os tenha ouvido para que algures as lápides tenham epitáfio.
Já é tarde, sim, já tarde para evitar, é cedo para responsabilizar e é ainda hora de salvar, é ainda hora de apagar. De apagar os focos de incêndio que ainda lavram. Mas não de apagar da nossa história futura a dor que nas famílias sobrevivas matou alguma coisa para sempre. A mesma pergunta: o que nos mobilizará? Haverá responsabilidades políticas mas até a cabeça de uma ministra é um pesa-papéis nesta história passada. As nossas cabeças, quanto pesam no futuro?
A informação disponível 24 horas depois revela uma conjugação fatídica de fatores naturais. De ordem climatérica imprevisível, dizem as autoridades ao país. De ordem climática previsível, explica Manuel Carvalho no Público: o aquecimento global provocará cada vez mais primaveras que parecem verões e verões que parecem infernos. Não parecemos ter consciência disso, porque nos parece lento e não estamos no futuro que anunciam. Só que estamos. E a nossa consciência coletiva deve verter-se em força de pressão social, para que os tratados de Paris não se encenem como guerras diplomáticas adiáveis e os esforços de combate e prevenção não sejam promessas em parágrafos finais.
E por isso sim, mesmo antes de sabermos se aquela estrada da morte devia ter sido encerrada mais cedo, sabemos já que são necessários mais meios de combate num país que tem helicópteros em terra por falta de dinheiro para os reparar. Mas ninguém tem dúvidas de que é na prevenção que está a ação. Na limpeza das matas, no desbloqueamento de vias de acesso, na criação de corredores corta-fogo, nos pontos de observação, na educação mínima para que não se deitem foguetes, não se façam fogueiras, não se deitem cigarros para a caruma. É preciso uma ASAE para as florestas, que force no inverno o cumprimento das leis escritas no fim de cada verão, que varra o país de lés-a-lés com ações de inspeção, multas, expropriações se necessário, que se financie o cuidado com as florestas, que haja tolerância zero, que façamos dos fogos de verão mais do que desamores de verão, que desenterremos da areia as preocupações dissolvidas às primeiras chuvas.
Depois da dor, depois do choque, depois do arquivamento, aí sim precisamos da revolta, da revolta cívica coletiva esclarecida e informada e de civismo individual, da tenaz persistente sobre a política e sobre o envolvimento coletivo em tantas frentes para que não sejam demais e se atropelam nem de menos e não se interpelem.
“É como se já não houvesse vida aqui”, lá onde o fogo matou. É justo que nos condoamos, que exijamos responsabilidades e até culpados, que respeitemos aqueles que morreram e nos enlutemos por aqueles que os perderam, que choremos com a Lacrimosa de Mozart (“dia de lágrimas, aquele”), clamemos com o Confutatis (“lançados às chamas devoradoras”) ou nos iremos com o Dies Irae (“dia de ira, aquele dia”). Mas nós também temos um papel, o papel da exigência e da pressão coletiva, um papel que só arde se aceitarmos a desistência de que a força de uma sociedade é nenhuma, se preferimos o clamor nas tragédias ao clarim da convocatória. Esta sirene está a tocar há muito, ouçamo-la, o estrídulo do seu grito só tocará se nos tocar a nós, mobilizemo-nos nós, mobilizemo-nos, mobilizemo-nos nós.
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