Ao
inculcar, com agressividade, que não há alternativa a si e a seu modo de vida,
capitalismo lança um desafio de morte. Escapar da armadilha requer recorrer às
cosmovisões não-eurocêntricas
Boaventura
de Souza Santos | Imagem: Antún Kojton, Cosmovisão dos tzeltales
maias
Os
seres humanos vivem dentro e fora da história. É isto o que os distingue dos
animais não-humanos. Fazemos história na medida em que resistimos ao que a
história faz de nós. Vivemos o que já foi vivido (o passado nunca passa ou desaparece)
e o que ainda não foi vivido (o futuro é vivido como antecipação do que em
realidade nunca será vivido por nós). Entre o presente e o futuro há um hiato
ou um vazio sutil, que permite reinventar a vida, romper rotinas, deixar-se
surpreender por novas possibilidades, afirmar, com a convicção do poeta José
Régio, “não vou por aí”. O que irrompe é sempre uma interrupção. A vida é a
constante recriação da vida. Doutro modo, estaríamos condenados ao Animal
Farm de George Orwell, a viver no pântano de só poder pensar o que já foi
pensado.
Neste
sentido, podemos afirmar que a forma de capitalismo que hoje domina,
vulgarmente designada por neoliberalismo, ao inculcar com crescente
agressividade que não há alternativa ao capitalismo e ao modo de vida que ele impõe,
configura uma proposta necrodependente, uma economia de morte, uma sociedade de
morte, uma política de morte, uma convivência de morte, um vício de ver na
morte dos outros a prova mais convincente de que estamos vivos.
Os
danos que esta proposta está causando já são hoje evidentes. A imaginação
e a criatividade que tornam possível a vida estão sendo sequestradas pelas
forças necrodependentes. Apesar de tudo que o que existe na história ter um
princípio e um fim, é já hoje difícil imaginar que o capitalismo, que teve um
princípio, tenha fim. Se tal dificuldade se comprovar inultrapassável, teremos
desistido de sair da história para fazer história, teremos assinado os papéis
para entrar na animal farm.
A
dificuldade é ultrapassável, mas para tal é necessário des-pensarmuito do
que até agora foi pensado como sendo certo e perene, sobretudo no Norte Global
(Europa e América do Norte). O primeiro des-pensamento consiste em
aceitar que a compreensão do mundo é muito mais ampla e diversificada que a
compreensão ocidental do mundo.
Entre
os melhores teóricos do pensamento eurocêntrico da passagem do século XIX para
o século XX houve sempre uma grande curiosidade pelo mundo extra-europeu – de
Schopenhauer a Carl Jung, de Max Weber a Durkheim –, mas ela foi sempre
orientada para compreender melhor a modernidade ocidental e para mostrar a sua
superioridade. Não houve nunca o propósito de apreciar e valorizar nos seus
próprios termos as concepções do mundo e da vida que se haviam desenvolvido
fora do alcance do mundo eurocêntrico, e que dele divergiam.
Em
total consonância com o momento culminante do imperialismo europeu (a
Conferência de Berlim de 1884-85 repartiu a África pelas potências europeias),
tudo o que não coincidia com a cosmovisão eurocêntrica dominante era
considerado atrasado e perigoso e, consoante os casos, objeto de missionação,
repressão, assimilação. A força desta ideia residiu sempre na ideia da força
dos canhões e do comércio desigual que a impuseram.
No
momento em que o mundo eurocêntrico dá evidentes sinais de exaustão intelectual
e política, abre-se a oportunidade para apreciar a diversidade cultural,
epistemológica e social do mundo e fazer dela um campo de aprendizagens que até
agora foi bloqueado pelo preconceito colonial do Norte Global, o preconceito
de, por ser mais desenvolvido, nada ter a aprender com o Sul Global.
O
segundo des-pensamento é que essa diversidade é infinita e não pode
ser captada por nenhuma teoria geral, por nenhum pensamento único global capaz
de a cobrir adequadamente. São infinitos os saberes que circulam no mundo. A
esmagadora maioria da população do mundo gere a sua vida quotidiana segundo
preceitos e sabedorias que divergem do saber científico que reputamos ser o
único válido e rigoroso. A ciência moderna é tanto mais preciosa quanto mais se
dispuser a dialogar com outros conhecimentos. O seu potencial é tanto maior
quanto mais consciente estiver dos seus limites.
Do
reconhecimento desses limites e da disponibilidade para o diálogo emergem
ecologias de saberes, constelações de conhecimentos que se articulam e
enriquecem mutuamente para, a partir de uma maior justiça cognitiva (justiça
entre saberes), permitir que se reconheça a existência e o valor de outros
modos de conceber o mundo e a natureza e de organizar a vida que não se pautam
pela lógica capitalista, colonialista e patriarcal que tem sustentado o
pensamento eurocêntrico dominante. Não há justiça social global sem justiça
cognitiva global. Só assim será possível criar a interrupção que permita
imaginar e realizar novas possibilidades de vida coletiva, identificar
alternativas reprimidas, descredibilizadas, invisibilizadas, que, em seu
conjunto, representam um fatal desperdício de experiência.
Daí
o terceiro des-pensamento: não precisamos de alternativas, precisamos de
um pensamento alternativo de alternativas. Esse pensamento, ele próprio
internamente plural, visa reconhecer e valorizar experiências que apontam para
formas de vida e de convivência que, apesar de pouco familiares ou apenas
embrionárias, configuram soluções para problemas que cada vez mais afligem a
nossa vida coletiva, como, por exemplo, os problemas ambientais. Tais
experiências constituem emergências e só um pensamento alternativo será capaz
de, a partir delas, construir uma sociologia das emergências. Consideremos o
seguinte exemplo.
A
natureza como ser vivo digno
Em
15 de março deste ano o Parlamento da Nova Zelândia aprovou uma lei que confere
personalidade jurídica e direitos humanos ao rio Whanganui, considerado pelos
índios Maori um rio sagrado, um ser vivo que consideram ser seu antepassado. Ao
fim de 140 anos de luta, os Maori conseguiram obter a proteção jurídica que
procuravam: o rio deixa de ser um objeto de propriedade e de gestão para ser um
sujeito de direitos em nome próprio que deve ser protegido como tal. À luz da
concepção eurocêntrica de natureza, que assenta na filosofia de Descartes, esta
solução jurídica é uma aberração. Um rio é um objeto natural e como tal não
pode ser sujeito de direitos. Foi precisamente nestes termos que a oposição
conservadora questionou o primeiro-ministro neozelandês. Se um rio não é um ser
humano, não tem cabeça, nem tronco, nem pernas, como lhe atribuir direitos
humanos e personalidade jurídica? A resposta do primeiro-ministro foi dada em
forma de contra-pergunta. E uma empresa tem cabeça, tem tronco, tem pernas? Se
não tem, como nos é tão fácil atribuir-lhe personalidade jurídica?
O
que está perante nós é a emergência do reconhecimento jurídico de uma entidade
a que subjaz uma concepção de natureza diferente da concepção cartesiana que a
modernidade ocidental naturalizou como sendo a única concepção possível.
Inicialmente, esta concepção estava longe de ser consensual. Basta recordar
Espinosa, a sua distinção entre natura naturata e natura
naturans e a sua teologia assente na ideia Deus sive natura (deus,
ou seja, a natureza). A concepção espinosista tem afinidades de família com a
concepção de natureza dos povos indígenas, não só na Oceânia como nas Américas.
Estes últimos consideram a natureza como Pachamama, terra-mãe, e defendem
que a natureza não nos pertence; nós é que pertencemos à natureza.
A
concepção espinosista foi suprimida porque só a concepção cartesiana permitia
conceber a natureza como um recurso natural, transformá-la num objeto
incondicionalmente disponível à exploração dos humanos. Afinal era esta uma das
grandes razões, senão a maior razão, da expansão colonial e a melhor
justificação para a apropriação não negociada e violenta das riquezas do Novo
Mundo. E para que a apropriação e a violência fossem plenas, os próprios povos
indígenas foram considerados parte da natureza. Foi precisa uma encíclica papal
(Sublimis Deus, do Papa Paulo III em 1537) para garantir que os índios tinham
alma, uma garantia menos generosa do que pode parecer, uma vez que se destinava
a justificar a evangelização (se os índios não tivessem alma, como pretender
salvá-los?).
A
novidade jurídica vinda da Nova Zelândia tem precedentes. A Constituição do
Equador de 2008 estabelece no artigo 71 que a natureza, concebida como
terra-mãe, é um sujeito de direitos. E uma semana depois da promulgação da lei
neozelandesa, o tribunal supremo do Estado de Uttarakhand da Índia decidiu que
os rios Ganges e seu afluente Yamuna eram “entidades humanas vivas”. Se levadas
à prática, estas decisões estão longe de ser triviais. Significam, por exemplo,
que as empresas que contaminam um rio cometem um ilícito criminal e a
indenização a que ficam obrigadas será imensamente superior às que hoje pagam –
quando pagam. Já em 1944, Karl Polanyi lembrava na sua obra-mestra, A Grande
Transformação, que se as empresas capitalistas tivessem de indenizar
adequadamente todos os danos que causam aos seres humanos e à natureza
deixariam de ser rentáveis.
Estas
inovações jurídicas não surgem de concessões generosas das classes dominantes e
elites eurocêntricas. São o culminar de processos de luta de longa duração,
lutas de resistência contra a exploração capitalista e colonial, imposta como
imperativo de modelos de desenvolvimento que, previsivelmente, só beneficiaram
os exploradores. O seu carácter de emergências reside no fato de serem
aflorações de uma outra relação entre humanos e natureza que pode ser
potencialmente decisiva para resolver os graves problemas ambientais com que
nos defrontamos. São emergências porque não servem apenas os interesses dos
grupos sociais que as promovem, mas antes os interesses globais da população
mundial junto com o aquecimento global e as dramáticas consequências que
daí advêm. Para lhes dar o crédito que merecem, não podemos nos apoiar no pensamento
eurocêntrico hegemônico. Precisamos de um pensamento alternativo de
alternativas, a que venho chamando epistemologias do sul.
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