A
gestão violenta de populações é um projeto funcional de governo e repressão de
setores da sociedade, e de ordenamento e gestão de determinados espaços
periféricos
Tomaz
Paoliello e Manoela Miklos
Os
militares estão de volta ao Rio de Janeiro sem nunca terem deixado a cidade.
Nos últimos 12 meses, os militares foram chamados 4 vezes para intervir no
local. Ao longo da última década, o
estado do Rio recorreu às Forças Armadas 12 vezes. Quem circula pelas ruas
da cidade já se acostumou com a presença de homens em uniformes camuflados,
atiradores de elite, carros blindados e diversos outros personagens normalmente
associados a palcos de guerra.
A
participação das forças armadas na segurança pública no Rio de Janeiro pode ser
contada por duas vias distintas. A primeira é a narrativa “local”, mais comum
seja para os especialistas em segurança pública ou para ativistas na área. As
versões construídas dentro dessa perspectiva destacam a extrema violência
urbana no Rio de Janeiro, agravada pela crise da administração no estado. Essa
violência é exercida por facções e grupos de crime organizado, mas está
intimamente ligada a uma opção pela ação violenta do Estado nas favelas e
periferias, dinâmica que acarreta num genocídio das populações negras. Esse
processo está vinculado a uma opção por tratar as políticas de drogas como
problemas de segurança, que busca o confronto armado e produz enormes violência
e letalidade, além da brutal política de encarceramento.
É
possível citar ainda o argumento “oficial”, que justifica operação militar ao
formular uma suposta situação de emergência na segurança pública na cidade e no
estado, que demandaria ações também emergenciais. Todas essas histórias são
verdadeiras e nos ajudam a compreender o que ocorre em nossas ruas. São uma
face da tragédia que ocorre na cidade do Rio de Janeiro e articulam de maneira
necessária o ativismo que busca combater a violência.
Mas
essa história pode ser contada também como parte de um repertório transnacional
ou global de gestão militarizada de espaços e populações. O uso das Forças
Armadas como ferramenta de segurança pública não é exclusivo do Rio de Janeiro
ou mesmo do Brasil. A Colômbia segue como um caso destacado para a compreensão
do nexo guerra-polícia, onde o governo operou junto com forças internacionais a
mais explícita versão da “guerra às drogas”. Há décadas a segurança do país é
gerida por um complexo de atores públicos e privados, locais e globais, que
inclui as polícias, o exército nacional, as forças armadas dos Estados Unidos,
além de empresas de segurança privada e milícias locais.
O
México segue em vários aspectos a mesma trajetória, com um cenário de extrema
violência gerido e instigado pela participação de militares e polícias na
segurança pública. O país adotou um receituário de segurança pública
repressiva, de confronto e encarceramento, em grande medida formulado nos
centros globais de poder, notadamente nos Estados Unidos. Esse repertório foi
desenvolvido através de testes em diversos laboratórios em países periféricos,
por exemplo na própria Colômbia.
Uma
perspectiva focada na “solução de problemas” geralmente aborda os casos da
Colômbia e do México como fracassos de uma opção de política pública. Para essa
visão surpreende que essa mesma opção militarizada seja reiteradamente
aplicada, apesar do nosso enorme banco de dados que confirmaria o fracasso do
combate militarizado do crime e das drogas. Esse tipo de leitura é necessário
para articulação de ativistas que pretendem trazer alguma melhora às condições
de vida de enormes parcelas da população. Mas ela precisa ser complementada por
uma perspectiva crítica, que perceba a gestão violenta de populações como um
projeto funcional de governo e repressão de setores da sociedade, e de
ordenamento e gestão de determinados espaços periféricos.
As
ruas de grandes cidades são policiadas pelas Forças Armadas em diversas das
periferias globais. Os militares brasileiros estão presentes nas periferias do
Rio de Janeiro, mas também em Porto Príncipe, no Haiti. A Guarda Nacional dos
Estados Unidos esteve presente em Bagdá, mas também foi chamada a intervir em
New Orleans e em Baltimore. Diversos dos mesmos ex-militares colombianos
treinados pelas forças armadas dos EUA prestam serviços a empresas militares
privadas em palcos de conflitos ou de intervenções internacionais, na Libéria,
em Serra Leoa ou no Afeganistão.
Compreender
a presença do exército em nossas cidades como uma manifestação disfuncional é
interpretar o exército meramente como um instrumento de guerra. Isso significa
ficar preso à sua dimensão jurídica ou conceitual, e perder de vista a função
que de fato exerceu ao longo da história dessas localidades. Nesses locais, o
exército é corresponsável, junto com outras organizações como as polícias e as
milícias, pelo governo violento de determinadas populações e territórios. É
assim na América Latina, na África, ou nas periferias de grandes cidades
norte-americanas.
A
interpretação dos militares como uma força de governo e de garantia de ordem
foi em geral ocultada pela literatura mainstream de Relações
Internacionais. Ao separar conceitualmente a segurança internacional da
segurança pública, criamos uma barreira que nos impede de perceber formas de
responder aos desafios da segurança e da insegurança na contemporaneidade com
punitivismo e repressão. Reificamos uma escalada da violência, em especial –
como é de praxe e é da praxis do sistema em que vivemos – nas periferias. Não
questionamos a essência de um repertório global mano dura que ganha
concretude de modo singular em cada contexto. Essa percepção segue sendo
deslegitimada por círculos acadêmicos como questão inviável para as RI.
Rejeitado pela comunidade epistêmica que poderia dar contribuição decisiva para
a compreensão de tais temas. As fronteiras disciplinares trabalham junto às
fronteiras políticas para nos fragmentar, podar percepções compreensivas e
críticas e ocultar as dinâmicas globais que oprimem, reprimem, encarceram e
matam.
Terra
em Transe | Outras Palavras
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