Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
Por
mais que os diferentes governos europeus e as instituições da União Europeia
(UE) repitam que o processo independentista catalão é um assunto que só ao
Estado espanhol diz respeito, a verdade é que o drama catalão não pode ser
desligado de uma situação de descarrilamento do "projeto europeu",
que afeta os diversos sistemas políticos nacionais e põe em evidência as
tensões internas da UE e a sua incapacidade de movimentação política útil.
Expressões
de desagregação ao nível dos sistemas políticos nacionais incluem o reforço de
independentismos (Escócia e Norte de Itália), a rutura de coligações centristas
(envolvendo a social-democracia e atrofiando-a) e o reforço da Direita
nacionalista, particularmente a Leste. Manifestações de descarrilamento da União
Europeia incluem, nomeadamente, o processo do Brexit, a exclusão da agenda
negocial de questões vitais para meia UE - desde logo a questão da dívida -,
divisões crescentes nas questões das migrações e impasses quanto ao Euro, as
suas regras e instituições.
É
certo que o independentismo catalão está longe de ser uma novidade e que as
suas raízes históricas são diversas. No entanto, é muito ampla a perceção do
crescimento da vontade independentista de largos setores da sociedade catalã
durante os últimos anos. Foi um período marcado pela crise associada à
imposição da agenda neoliberal e pela ingerência externa, mas também, em
Espanha, pela construção de perspetivas de ampliação da autonomia da Catalunha
seguidas de manobras das forças mais conservadoras para as aniquilar.
A
análise deste processo não pode ser desligada de um contexto económico e
político europeu que promove um movimento de centrifugação da UE onde se
observa, por um lado a imposição de uma UE dicotómica e, por outro, o
fortalecimento do seu centro (alemão-franco) em torno do reforço dos poderes
disciplinadores das instituições europeias. Esse poder disciplinador dá origem
a processos de desafio direto muito ostensivo e profundamente antidemocrático,
como aconteceu com o referendo grego, ou pura e simplesmente, de desconexão,
como no caso do Reino Unido.
É
certo que o nacionalismo catalão está longe de se concretizar em oposição à UE. A
Esquerda independentista talvez seja o setor político mais eurocético do Estado
espanhol, mas os conservadores catalães da antiga CiU são entusiastas da União
Europeia. O que, no fundamental, une todos estes contramovimentos políticos à
escala europeia é uma tentativa de recuperação de soberania e de democracia por
parte dos povos, num contexto pós-crise com desemprego de massas, crescente
precariedade no trabalho e fragilização da proteção social, com ruturas de
solidariedades e novos fatores de desigualdade. Os povos são sufocados pelo
determinismo de que nada podem fazer contra a globalização e a financeirização
das economias e contra poderes externos, formais e informais.
Face
à independência política dos bancos centrais, aos limites da política
orçamental, à chantagem das deslocalizações para fugirem à regulação laboral,
aos acordos internacionais de liberalização comercial - o fortalecimento das
instituições estatais, ou mesmo a crescente criação de novas, mostram que os
obituários declarados ao Estado são infundados e, ao mesmo tempo, perigosas
cartilhas para os objetivos de vida digna dos cidadãos. Cada ser humano vive
num sítio concreto: é aí que tem de encontrar habitação, alimentos, serviços
que lhe assegurem saúde e acesso a direitos fundamentais, condições de
socialização, estruturas sociais, económicas, culturais e políticas, poderes em
proximidade e em condições de serem responsabilizados.
As
configurações destes contramovimentos são muito variadas - da Direita xenófoba
à Esquerda internacionalista - e os seus resultados estão ainda longe de estar
definidos, até porque, muitas contradições estão ou surgirão evidentes e muita
poeira terá de assentar. Perante esta indefinição será um erro irreparável
insistir na inevitabilidade da globalização neoliberal, criar sucessivas
ilusões sobre a possibilidade de uma justa e eficaz regulação transnacional,
secundarizar o papel do Estado e a soberania dos povos.
*Investigador e
professor universitário
Sem comentários:
Enviar um comentário