Durante
quatro séculos, Portugal teve um papel central no tráfico de milhões de pessoas
escravizadas. Até agora, nenhum monumento olhava para este passado. A Djass -
Associação de Afrodescendentes decidiu que era preciso agir e o seu projeto foi
um dos vencedores do Orçamento Participativo de Lisboa. O SOS Racismo
congratula-se com o memorial que será construído na Ribeira das Naus.
Os
vencedores do Orçamento Participativo de Lisboa 2017/2018 foram divulgados na
passada segunda-feira. Entre eles, há um que se destaca pelo contributo que
traz para o debate sobre o passado colonial português.
Com
1.176 votos, o projeto para a edificação de um memorial de evocação da
escravatura pretende “homenagear as vítimas da escravatura e celebrar a
abolição da escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas”. Segundo a página
na internet do Orçamento Participativo, o projeto está agora em estudo,
com um orçamento estimado de 100 mil euros e cujo prazo de execução está
previsto em um ano.
Antes
de mais, é de notar o facto de este monumento ser o primeiro em Portugal. Ao
contrário do que acontece noutros países, como em Inglaterra, por exemplo, o
nosso país, contrastando com locais como o Padrão dos Descobrimentos, não tem
qualquer memorial que preste homenagem às vítimas do colonialismo e às pessoas
escravizadas.
Foi
precisamente este motivo que levou a Djass – Associação de Afrodescendentes a
lançar a iniciativa que saiu agora vencedora. “Ao longo de várias
reflexões, verificámos que não há nenhum monumento que evoque a participação de
Portugal no tráfico de pessoas escravizadas. Pelo contrário, há inúmeros
monumentos que evocam o período dos ‘descobrimentos’ e de toda a epopeia
portuguesa”, começa por explicar Beatriz Gomes Dias, presidente da associação,
ao Notícias ao Minuto.
O
problema estava identificado. “Portugal teve um papel importantíssimo no
tráfico de pessoas escravizadas e contribuiu com a exportação de seis milhões
de pessoas escravizadas”. Por isso, para a Djass, “era importante que
existisse um memorial que fizesse um reconhecimento desse papel de Portugal na
escravatura e que, além disso, também celebrasse a resistência dos povos que
foram escravizados”.
E
assim foi. Depois de ter sido rejeitada numa fase inicial, a candidatura foi
aceite e começaram as iniciativas para a promover, nomeadamente através da
página de Facebook Memorial
às Vítimas da Escravatura - Lisboa.
Meses
depois, mais de mil pessoas deram a vitória ao projeto. “Este número de
votos mostra que há muitas pessoas que apoiam este projeto, ao contrário
daquilo que muitas vozes querem fazer acreditar. Há imensas pessoas que
querem que a história de Portugal seja contada em todas as suas dimensões, e
que não seja só a glorificação das descobertas, mas que também seja revelada a
barbárie, a opressão e a violência que estiveram por trás do projeto colonial
português”, afirma Beatriz Gomes Dias.
Está
previsto que o monumento seja edificado na Ribeira das Naus, perto do Campo das
Cebolas, local onde as pessoas escravizadas que chegavam a Portugal eram
comercializadas.
Um
memorial para enfrentar o passado e olhar o presente
A
notícia foi muito bem acolhida pela SOS Racismo, associação que tem lutado
não só contra a discriminação racial no nosso país, como também tem alertado
para a necessidade de realizar uma “catarse histórica” que permita a Portugal
olhar para o seu passado e pensar o seu presente e futuro.
“Tendo
em conta que Portugal foi das maiores potências esclavagistas de toda a
história da humanidade e que continuou, inclusive, as práticas escravocratas
mesmo depois da abolição da escravatura, nas suas antigas colónias, através do
trabalho forçado, este resgate da memória é muito importante, não apenas
para celebrarmos o passado, mas para olharmos para o presente e encontrarmos
soluções para os problemas com que se confrontam os descendentes de africanos
que vivem em território português”, realça Mamadou Ba, dirigente
da SOS Racismo.
Por
esse motivo, a edificação de um monumento que coloque o dedo na ferida e
exponha o “esqueleto no armário”, como o ativista faz sobressair
em conversa com o Notícias ao Minuto, será um fator importante para
alargar a discussão e debater o racismo existente na sociedade portuguesa.
“Consideramos
que o racismo na sociedade portuguesa é estrutural e estruturante, uma
continuidade do projeto colonial português, que começou com a escravatura e
continuou com a ocupação dos países africanos”, sublinha, por seu turno,
Beatriz Gomes Dias, que espera ainda que “esta discussão em torno do racismo
permita fazer uma reflexão em torno do racismo institucional e que haja uma
reparação, que haja alterações legislativas que criminalizem o racismo”.
Nesse
sentido, apesar de a iniciativa ter partido da Djass, a associação deseja que
venham mais contributos da sociedade civil. “Queremos que este processo
seja o mais alargado possível, que seja de baixo para cima, que seja
participado pelas associações de afrodescendentes e imigrantes e que haja
consulta de todos para a construção do projeto”, reitera a associação de
afrodescendentes, que nasceu em 2016 e que tem crescido imenso desde então,
envolvendo-se não só em campanhas políticas, como também na organização de
eventos – palestras, concertos, conferências, entre outras.
A
associação quer continuar o trabalho desenvolvido em 2017, “um ano de imensa
atividade”, e para tal lança o apelo à sociedade civil para que se envolva no
processo de edificação do monumento, uma vitória muito importante, em
particular, para a comunidade afrodescendente. “Foi uma vitória de todos
os que acreditam que é importante contar a história de uma outra forma”,
destaca a presidente da Djass.
Programa
em torno do monumento
Contactada
pelo Notícias ao Minuto, a Câmara Municipal de Lisboa não deu mais
pormenores relativamente ao projeto, uma vez que “não comenta projetos
individualmente”.
Mas
a expectativa da Djass é que o monumento seja mesmo erigido e que, depois, “seja
construído todo um programa em torno do monumento, e que esse programa permita
falar da história da escravatura, das pessoas escravizadas, da história
colonial e do reconhecimento pleno do papel que os africanos tiveram na
construção do que é Lisboa e Portugal, o contributo para a riqueza do país”.
Esta
necessidade que se impõe vai ao encontro das pretensões da SOS Racismo,
que pede celeridade no processo, bem como esforços para que o monumento seja
acompanhado por um programa que permita debater a questão do racismo e do
passado colonial português.
“Só
espero que a Câmara Municipal de Lisboa, uma vez que este projeto foi escolhido
pelos lisboetas que estão preocupados com esta causa, seja célere na execução
da obra e na sua concretização”, apela Mamadou Ba, que pede ainda que “sejam
disponibilizadas as verbas previstas para a construção do memorial e que ao
lado da execução da obra se invista em esforços para lhe dar conteúdo
programático”, isto é, “que ao lado do memorial haja iniciativas de
natureza política que possam corresponder aos anseios das comunidades
afrodescendentes que vivem em Portugal”.
Pedro
Bastos Reis | Notícias ao Minuto | Foto: Getty Images
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