Tinha
na cabeça que tudo no mundo se conseguia por um exercício doloroso de vontade e
que as frases tinham de ter um encantamento que convocasse o primeiro sentido
da ação das palavras. Eram também estas que mudavam o mundo. Evocar os nossos
mortos e a nossa memória era a forma de fazer esse exorcismo
Nuno
Ramos de Almeida | jornal i | opinião
Para
mim, o Natal sempre foi uma merda. A única utilidade que lhe vejo é convocar o
passado e lembrar-me das pessoas que já não caminham a nosso lado. Estranho que
um nascimento inscrito na nossa cultura apenas me inspire a névoa da memória.
Não consigo encontrar alegria na música irritante nem nas iluminações garridas.
A embirração é tão forte que o único filme em que puxo pelos nazis é na “Música
no Coração”. Os jantares de família enfadam-me. Só vejo fantasmas a pairar
sobre as rabanadas. Muitas vezes vêm--me à memória estas recordações sobre as
quais já escrevi há anos.
Aproximava-se
o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho.
Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não
me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha.
Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as
casas clandestinas onde viviam crianças. Era membro de uma comunidade, embora
não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma
quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como
chegaram os brinquedos a cada um de nós. Mas, na altura, isso fazia-me sentir
que não estávamos sozinhos.
Tinha
a nítida sensação de pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade.
Nesse coletivo estavam pessoas de muitas raças e países. Anos antes, andava na
escola francesa em Argel. Estudávamos lá argelinos e filhos dos refugiados
políticos. A guerra da independência tinha sido há poucos anos. O sangue tinha
corrido pelas ruas. Milhões haviam morrido nos bombardeamentos dos franceses. A
tortura durante a guerra tinha atingido níveis nunca vistos. A FLN (Frente de
Libertação Nacional Argelina) tinha pedido aos militantes que tentassem aguentar
sem falar três dias – apenas três dias, para permitir mudar os contactos e
resistir à repressão. Depois da independência, a cidade viveu um sonho
estranho. Lembro-me dos aromas das especiarias e do ruído das manifestações.
Também me ficou a recordação do fedor a excrementos nos elevadores dos prédios
abandonados pelos franceses e ocupados por argelinos que nunca tinham vivido em
prédios europeus. Mais tarde, o meu pai e a minha mãe contaram-me que uma noite
tinham conhecido aquele que mais tarde seria lembrado com o nome de Che. Já
adolescente, interroguei o meu pai para saber como ele era. Será que se vê o
heroísmo nos heróis? O meu pai insistiu que ele era sobretudo calado e tímido.
Eu
frequentava uma escola de que só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos
brincávamos às guerras. Os professores franceses que ainda restavam, quando nos
apanhavam, batiam-nos e ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que
éramos espancados e confrontaram os professores, que negaram terminantemente as
agressões. Um dia, alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos
agressores no meio da confusão do pátio. Lembro-me que algumas das nossas
pedras lhe acertaram em cheio. Quando nos bateram a seguir, quase não doeu.
Anos mais tarde, em França, numa casa de apoio de camaradas do PCF (Partido
Comunista Francês) em Paris, o meu pai comunicou-me que íamos entrar em
Portugal. Por causa dos “maus”, a PIDE, tinha de escolher um nome. Um nome
diferente do meu? Sim. Escolhi Sérgio. Passámos a fronteira por um sítio que os
meus pais me explicaram ser um grande jardim. Era, de facto, grande. Caminhei
até cair. O meu pai levou-me o resto do caminho às costas. Acordei no dia
seguinte a vomitar, numa pensão em Chaves, com um daqueles lavatórios de ferro.
Chegámos a Lisboa e arranjámos uma casa clandestina. A minha mãe mobilou-a com
todos os cuidados conspiratórios: a maior parte da mobília na área social, para
passarmos por uma família normal. Gastou menos que o previsto, estava feliz.
Mas, mais tarde, o camarada responsável pelas casas criticou-a por ter gasto
dinheiro num esquentador. A minha mãe nunca conseguiu esquecer o facto. Quando,
anos depois, voltámos para a legalidade e apoiávamos o aparelho clandestino,
pediram uma lista de coisas à minha mãe. Leu-a e respondeu, dura: “Diz ao
fulano (o camarada com quem ela tinha discutido) que compro tudo menos o
esquentador.”
Tive
a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo
quando anoitece, sei que é possível ver o sol nascer com uma claridade que
varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de fixar a cara de alguns e escolher
uma pedra.
Sem comentários:
Enviar um comentário