Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre
| Brasil
Entre as profissões que, ao
longo do tempo, foram desaparecendo frente às novas tecnologias, a exemplo do
amolador de faca, do consertador de panelas e do realejo, escolhi homenagear,
por meio deste texto, a arte dos antigos fotógrafos lambe- lambes.
Inicialmente, esta atividade
era associada a imigrantes que eram chamados genericamente de “gregos”, embora
houvesse lambe-lambes turcos, armênios ou espanhóis. Em se tratando de um país,
como o Brasil, marcado pela diversidade cultural, o ofício de lambe-lambe foi
sendo transmitido para aqueles que demostrassem interesse em aprender. A
atividade cresceu e passou a fazer parte do cotidiano das praças, ruas e
jardins das principais cidades brasileiras. Estes fotógrafos ambulantes
começaram a surgir nas primeiras décadas do século 20, exercendo a sua
atividade ao ar livre. Procurados para registrarem momentos especiais, ou para
tirar retratos para documentos do tipo 3x4, os lambe-lambes se transformaram em
figuras tradicionais do cenário urbano.
A ferramenta de trabalho destes
antigos fotógrafos era uma caixa de madeira sobre tripé, cujo equipamento tinha
a função de bater as chapas e revelá-las ali mesmo. Além de ser utilizada para
o registro fotográfico, esta servia também como mostruário, sendo as suas laterais
cobertas de fotos. Montada e remontada, com a intuição e a experiência destes
profissionais ambulantes, a máquina do lambe-lambe se tratava de um produto
caseiro e artesanal, construída com sobras recicladas a partir de um primeiro
modelo chamado “Bernardi”. Este parâmetro prevaleceu, ao longo do tempo, no
qual cada fotógrafo, de acordo com a sua experiência, imprimiu–lhe uma variação
técnica, seja quanto à regulagem da entrada da luz ou em relação às prensas
onde obtinha suas cópias, O fundamental no processo é que a dupla função de
câmera e laboratório fosse sempre mantida.
O lambe–lambe e
a sua técnica
Após ser batida, a
fotografia do lambe-lambe era revelada e copiada dentro do mesmo caixote que
sustentava a lente. Na realidade, podemos afirmar que, em seu interior, havia
um micro laboratório. Ao entrar na “casaca’ (o pano preto), o fotógrafo obtinha
o seu negativo no escuro. Esta rotina era a mesma de um laboratório comum da
época, porém numa espaço ínfimo, onde a paciência do fotógrafo permitia
viabilizar, graças à sua destreza, o produto tão esperado pelo seu cliente : a
fotografia.
Após banhar o filme em sua
química, ou seja, nos respectivos líquidos – o revelador e o fixador- o
lambe-lambe, num segundo momento, lavava o negativo, secando o mesmo ao vento.
Importante que se registre: o início deste milagre se realizava dentro do
caixote, procedendo à transferência da imagem para o papel.
O fotógrafo lambe-lambe se
adaptava ao reduzido espaço e seguia registrando os rostos. A cópia de seus
negativos – sempre com o mesmo formato - era realizada por um sistema idêntico
ao dos filmes. A diferença básica residia num micro laboratório, cujo
“ampliador” se tratava de um buraco. Tendo a sua abertura em cima do caixote,
este poderia ser coberto por um vidro fosco ou papel vermelho, dando a luz da
impressão – que era natural - quanto a luz do quarto escuro para o tratamento
das fotos. Ao controlar a luz solar que passava por esse buraco, o lambe-lambe
demonstrava a sua técnica e sua precisão durante o processo, pois o tempo de
exposição era sujeito às múltiplas variações do clima, Este profissional se
tornava, por exigência de seu ofício, um autodidata na área da meteorologia. Em
teoria, bastava um segundo para a exposição de uma cópia, porém, em meio a
árvores e pombos presentes numa praça, esta precisão acabava sofrendo
variações. A chuva era a sua adversária principal e o Sol era a garantia do
exercício do “seu pão de cada dia”. Em síntese, era preciso ficar de olho nas
nuvens para ser um bom retratista.
Origem do nome
Existem algumas versões
acerca do termo lambe-lambe, que merecem ser mencionadas. A mais antiga
afirma que o fotógrafo ao tirar a chapa do fixador - naquela época ainda não
era usado o filme – a gelatina ficava com algumas partes elevadas, sendo
necessário molhar com a saliva para que esta se assentasse. Outra versão - sem
dúvida bastante curiosa – tem a sua origem no fato que a pessoa ao buscar o seu
serviço, muitas vezes, não tinha um pente para um último “retoque” antes de tirar
a sua foto, restando-lhe, assim, molhar os dedos, com a saliva, e passá-los nos
cabelos. Uma terceira origem se refere a uma época em que não se usava
bicabornato de potássio, então o fotógrafo lambia ou passava a foto no suor do
seu braço, visando a dar brilho. Já a ferrotipia é considerada a origem mais
viável. Trata-se de um processo que envolvia uma camada de asfalto sobre uma
chapa de ferro em torno de 1mm, na qual era aplicada a emulsão. Após a
revelação com sulfato de ferro, o fotógrafo lambia a chapa, resultando que a
imagem se destacava do fundo preto asfáltico devido à ação do cloreto de sódio
presente na saliva.
Tradição x modernidade
Ao desenvolver a sua atividade em
espaços públicos, os lambe-lambes foram testemunhas oculares das transformações
tecnológicas e do crescimento das cidades que foram tornando o papel do
lambe-lambe obsoleto, permanecendo apenas o saudosismo de uma época presente no
imaginário das pessoas que compartilharam essas vivências no espaço público da
urbe. Profissão legada geralmente por herança e de tradição familiar, era
basicamente regida pela intuição e por amor, sendo esta a forma genuína como os
lambe-lambes se relacionavam com suas toscas e pesadonas máquinas nas praças,
jardins e parques.
A partir de 1955, a profissão
inicia um processo de decadência frente a vários fatores, como o surgimento de
novas tecnologias no campo da fotografia, onde rapidez e qualidade da imagem se
tornaram premissas fundamentais para os profissionais da área.
Junto com o aumento
populacional e as dificuldades econômicas, praças e jardins públicos passaram a
ser frequentados por uma população desocupada e considerada de má índole,
gerando a desconfiança e o medo em seus frequentadores que foram se afastando
desses locais públicos até então pontos de encontro e de sociabilidades da
classe trabalhadora e da própria elite.
A indústria fotográfica ao despejar no
mercado as mais variadas máquinas e equipamentos, de fácil manuseio e
automáticos, contribuiu de forma incisiva para o desaparecimento destes
profissionais, permanecendo apenas a lembrança e o registro histórico graças às
pesquisas de incansáveis profissionais ligados à área das Ciências Humanas. O
mundo se encontra em pleno domínio da fotografia digital, mas ainda é possível
encontrar alguns lambe-lambes - hoje verdadeiras raridades - como é o
caso do fotógrafo lambe-lambe, Daniel Doval, que trabalha em uma praça de
Olinda, Pernambuco, e de Varceli Freitas Filho , atualmente com 73 anos,
que, por muito tempo, exerceu este ofício num antigo e tradicional ponto
de lazer de Porto Alegre. Trata-se do Chalé da Praça XV, localizado no centro
de Porto Alegre, a capital dos gaúchos.
Reconhecimento
Escrito por Ana Maria Machado e
publicado em 1974, o livro “Bem do teu tamanho” registra um diálogo da
personagem principal, Helena, travado com um fotógrafo Lambe-lambe. No ano de
1984, o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, então sob a direção, à
época, do diretor e roteirista cinematográfico Jorge Alberto Furtado, realizou uma
exposição em homenagem aos fotógrafos ambulantes, tendo como título “ A arte do
fotógrafo lambe-lambe”.
No ano de 2012, a Prefeitura Municipal
de Belo Horizonte junto ao IEPHA, concluiu o processo de registro do ofício do
fotógrafo lambe-lambe como bem cultural imaterial. Elaborado entre 2008 e 2011,
teve três etapas: levantamento preliminar, identificação e documentação. Este
reconhecimento foi acompanhado da exposição fotográfica "Fotógrafo
lambe-lambe: retratos do ofício em Belo Horizonte", realizada na Casa do
Baile.
Em 04 de setembro de 2009, no Rio
Grande do Sul, como registrou o jornal Correio do Povo, no dia subsequente, o
prefeito em exercício de Porto Alegre, Sebastião Melo, sancionou a lei que
concedeu aposentadoria de dois salários mínimos a Varceli Freitas Filho. Ele é
último fotógrafo lambe-lambe da Capital, tendo herdado de seu pai a técnica
desta tradição. O benefício vitalício é destinado a cidadãos que prestaram
relevantes serviços ao município. O lambe-lambe Varceli ao fotografar
sempre diz para os clientes “olha o passarinho”, remetendo ao famoso verso de
seu poeta preferido, o alegretense Mario Quintana (1906-1994):”Todos esses que
aí estão. Atravancando o meu caminho, Eles passarão… Eu passarinho! (Caderno H.
2 ª edição. São Paulo: Globo, 2006. p.107).
Em 2014, a Zit Editora, visando
estimular a criatividade das crianças, trouxe a publico a coleção
“Contadores de Histórias”, Dos três livros que compõem a coleção , um trata da
figura do lambe-lambe, cujo título é “O lambe-lambe Malaquias” da autoria de
Lenice Gomes com ilustrações de Anielizabeth.
Os lambe-lambes - fotógrafos à la minute
- fazem parte do nosso imaginário social, permanecendo viva a sua atividade nas
lembranças de quem os conheceu, nas narrativas dos “mais velhos” e nos espaços
de preservação de memória, como arquivos e museus.
Vídeo sobre o último fotógrafo
lambe-lambe em Porto Alegre / SBT / RS: https://www.youtube.com/watch?v=2UdNBEq0cyg
*Pesquisador
e coordenador do setor de imprensa do Museu de comunicação HJC
Bibliografia
ÁGUEDA, Abílio Afonso da. O
fotógrafo Lambe-Lambe: guardião da memória e cronista visual de uma comunidade.
Rio de Janeiro. 2008. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tese de
Doutorado.
XAVIER, Cássia. Recuperando a
Fotografia Lambe-lambe. Universidade Senac - São Paulo, 2008. Tese de conclusão
de curso.
Folheto da Exposição “A arte do
fotógrafo lambe-lambe” / Secretaria de Educação e Cultura / Museu da
Comunicação Hipólito José da Costa [s/d]
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