Nos EUA, o ano de 2017 foi um ano
de tragédia e conflito. E não me refiro apenas à presidência de Donald Trump.
Há diversos elementos a considerar que, não sendo novos, persistiram ou se
agravaram ao longo deste ano.
André Levy* | AbrilAbril
| opinião
Nos EUA, o ano de 2017 foi um ano
de tragédia e conflito. E não me refiro apenas à presidência de Donald Trump.
Considerem os seguintes elementos, que, não sendo novos, persistiram ou
agravaram-se no decorrer do ano:
– um número crescente de
incidentes de violência
com arma de fogo (mais de 60 mil), com mais de 15 mil fatalidades,
tendo havido mais de 300 incidentes de massas (quatro ou mais vítimas),
incluindo o incidente de disparos num quarto de hotel em Las Vegas, que matou
59 pessoas e feriu mais de 500;
– a persistência da violência
policial, com 971 mortos pelas forças policiais, sendo três vezes mais
provável um suspeito ser morto pela polícia se for negro;
– o ascendente das forças
xenófobas e racistas, encorajadas pela vitória de Trump, incluindo incidentes
como o de Charlottesville;
– um crescente problema de
toxicodependência, assumindo novos extremos com a epidemia de opióides: em
2016, dos 64 mil mortos por overdose nos EUA (mais do que o número de soldados
mortos durante toda a Guerra ao Vietname), 50 mil foram-no por opióides e,
destes, cerca de 20 mil com opióides sintéticos (como fentatil), grupo que
registou o maior aumento;
– um aumento da disparidade de
rendimento entre ricos e pobres (o 1% mais rico possui 40% da riqueza nacional,
a maior proporção nos últimos 50 anos, e ganha 81 vezes mais que o 50%
inferior; em 1981 era apenas 27 vezes maior);
– um aprofundamento da pobreza,
havendo estados com 20% da sua população abaixo do limiar da pobreza, e cerca
de 1,5 milhão de famílias a nível nacional na extrema pobreza, o dobro de há 20
anos;
– devastação por incêndios e várias
grandes tempestades, incluindo o furacão Maria, que causou destruição massiva
em Porto Rico, tendo mais uma vez evidenciado atrasos e insuficiências da
resposta à situação de emergência criada;
– (por razões espaço e tempo,
este artigo procurou centrar-se na situação doméstica dos EUA, mas não posso
deixar de referir a continuada intervenção no Afeganistão, que constitui já o
mais longo conflito na história das forças armadas dos EUA.)
Mas que dizer da tragédia Trump
que não tenha já sido explorado? Uma figura cuja mistura de patético e poderio
nos diverte e atemoriza, cujos comentários erráticos e acções têm proporcionado
muitos momentos de sátira, mas sobretudo gerado incidentes internacionais com
presumíveis aliados, erodido canais diplomáticos, alimentado conflitos e
agravado situações de extrema delicadeza, como seja na Península Coreana ou na
Palestina. Ou seja, aumentando de forma dramática a situação de instabilidade a
nível mundial e a ameaça de guerras e conflitos adicionais.
Este primeiro ano de Trump ficou
marcado por grande instabilidade na sua equipa, com várias mudanças em postos
de primeiro escalão, como seja a porta-voz e conselheiros próximos, e diversas
situações de tensão com membros do seu gabinete e do seu partido no Congresso.
Início de mandato marcado desde cedo pelas suspeitas de colusão entre a sua
campanha presidencial e o governo da Rússia, levando à nomeação de um
Procurador Especial, que resultou já na condenação de Michael Flynn – nomeado
por Trump como Conselheiro de Segurança Nacional, cargo que exerceu durante
apenas três semanas – por ter mentido ao FBI sobre contactos mantidos com
governo russo durante o período de transição.
Ano marcado pela sua guerra com a
comunicação social de referência, que designa frequentemente de «notícias
falsas» (FAKE NEWS), muito embora Trump seja frequentemente promotor de
informação errónea, alguma de mera autopromoção, como seja a grande eficácia e
produtividade da sua presidência. (Registe-se como Robert Murdoch vendeu boa
parte do seu império da FOX à Disney, mas manteve controlo desse importante
instrumento de propaganda mediática a favor de Trump, a FOX NEWS). A verdade é
que, embora numa situação muito favorável, dada a maioria do Partido
Republicano (PR) em ambas as casas do Congresso, raras têm sido as propostas
legislativas significativas da Casa Branca aprovadas pelo Congresso. Trump tem
sido incapaz de unir o PR mesmo em torno de questões bandeira, como a reforma
do sistema de saúde implementado por Obama. Já em cima da hora, após muito
trás-para-a-frente (e com algum incumprimento de procedimento), aprovou-se em
Dezembro uma reforma fiscal, marcada por faustos apoios aos mais ricos e
parcos e limitados benefícios para a classe média e baixa. Aliás, as propostas
de Trump, apesar de já estar há um ano na Casa Branca, continuam a ter a mesma
parca densidade dos seus lemas de candidatura.
Mas por detrás dos tweets,
da fanfarronice e petulância, da esgrima com os media e a verdade,
por detrás dos feitos e dizeres com preocupantes consequências internacionais,
o gabinete de Trump e o PR têm logrado mudar o perfil do aparelho federal do
Estado. Desde logo, no processo de formação do seu gabinete. Trump indigitou
várias pessoas com opinião forte sobre quão desnecessárias eram as agências que
seriam nomeadas a liderar, ou cuja única visão era reduzir o número dos seus
quadros e orçamento. Assim, em vários departamentos (equivalentes aos nossos
ministérios) os recursos humanos têm diminuído em número, experiência e
qualificações.
Por exemplo, durante anos,
enquanto governador do Texas, Rick Perry apregoava a eliminação de três
departamentos federais: Comércio, Educação e Energia. Numa gaffe estupenda,
na campanha primária do PR em 2016, durante um debate com os restantes
candidatos republicanos, incluindo Trump, Perry foi incapaz de indicar esta
última agência («oops», diria). Trump foi precisamente nomear Perry como
Secretário de Energia, que hoje é um dos departamentos com mais cargos exigindo
confirmação senatorial ainda por preencher. Do ponto de vista internacional,
particularmente grave é a situação no Departamento de Estado (o equivalente ao
Ministério dos Negócios Estrangeiros), estando ainda por preencher, por falta
de nomeados, cerca de metade dos postos que exigem confirmação do Senado,
incluindo o embaixador dos EUA à Arábia Saudita, Egipto, Jordânia e Iémen
(entre vários outros). Só no início de Dezembro é que Victor Cha
foi oficialmente nomeado embaixador à Coreia do Sul!
A falta de nomeados e perspectiva
de decréscimo do tamanho dos quadros têm levado a quebras de moral assinaláveis
entre a Administração Pública. Em alguns casos têm mesmo conduzido a abandono
em grandes números, como é o caso da Agência de Protecção Ambiental, onde
cortes de orçamento e orientação política (incluindo cortes de regulamentação
ambiental e antagonismo oficial ao estudo das alterações climáticas) levaram à
saída de mais de 700 funcionários desde que Trump assumiu a Presidência,
atingindo a Agência o menor número de funcionários dos últimos 30 anos.
Na senda liberal de reduzir o
tamanho do Estado, Trump tem também logrado reduzir o nível de regulação
federal, eliminando alguma regulação em efectivo, mas sobretudo eliminando regulações
da era Obama que estavam ainda por implementar. Como consequência, Trump teve o
menor incremento regulador de qualquer presidente da era recente no seu
primeiro ano presidencial, incluindo Reagan.
Em contraste com a letargia nas
nomeações para a Administração Pública, referida acima, Trump e o PR têm sido
expeditos no ritmo das nomeações judiciais, tendo o Senado já confirmado um
juiz do Supremo Tribunal, 12 juízes federais de tribunal de apelação – um
recorde na história do país – e seis juízes de tribunais distritais. Os
nomeados judiciais de Trump são na sua vasta maioria homens (menos de 20%, face
aos 42% dos nomeados por Obama) e brancos (apenas 3% negros ou hispânicos, face
a 29% durante Obama), profundamente conservadores, adversos à IVG, direitos das
minorias, dos homossexuais, e favoráveis à desregulação. Recorde-se que estes
cargos são vitalícios e que, sendo o sistema judicial de tradição
anglo-saxónica, de direito comum, as decisões dos tribunais criam lei, pelo que
estas nomeações terão efeito duradouro, mais além da presença de Trump na Casa Branca.
Este avanço no processo de
confirmação contrasta com o bloqueio do Partido Republicano a confirmar
nomeações judiciais do Presidente Obama. O bloqueio mais notório foi à posição
no Supremo Tribunal ocasionada pela morte do Juiz Scalia, em Fevereiro de 2016,
mais de oito meses depois das eleições presidenciais. O maior obstáculo aos
Republicanos agora é apenas a falta de qualidade de alguns candidatos: cerca de
8% dos candidatos foram classificados pela Ordem de Advogados dos EUA como «não
qualificados», algo que se tornou patente no vídeo de confirmação do candidato
Matthew Petersen. O senador John Kennedy, um Republicano, fez-lhe sucessivas
perguntas sobre as suas competências e conhecimento, às quais Peterson foi
incapaz de responder. A última pergunta de Kennedy foi se Petersen alguma vez
havia apoiado o KKK, pergunta que se sentiu obrigado a colocar após o processo
de confirmação de Chuck Talley, outro nomeado «não qualificado», que terá feito
comentários on line de apoio ao KKK. Tanto Petersen como Talley
acabaram por retirar as suas nomeações. Das 150 vagas no judiciário federal
quando Trump assumiu a presidência, ainda só 14 nomeações foram confirmadas,
mas o ritmo deverá acelerar nos próximos meses, antes das eleições de 2018
(após as quais a maioria no Senado pode ser posta em cheque). Resta
saber se o Partido Democrata (PD) irá encontrar orientação e estratégia para
capitalizar a baixa popularidade de Trump. A recente eleição de Doug Jones como
senador pelo estado de Alabama, um estado profundamente Republicano, é sinal
promissor mais não seguro, pois ao PD falta ainda conquistar popularidade entre
o eleitorado, inspirar a união de forças em oposição a Trump e forças
retrógradas que o apoiam.
Mas o panorama não é de todo
negro. Recorde-se que algumas medidas de Trump foram travadas com a influência
de acções de massas, como foi o caso das restrições à entrada de refugiados nos
EUA. O ano de 2017 foi também ano marcante para o movimento das mulheres em
defesa dos seus direitos e da igualdade: desde o início do ano, com a
manifestação em massa em torno da tomada de posse presidencial, até ao
movimento #MeToo, que criou condições para vítimas de assédio sexual acusarem
os seus abusadores, conduzindo ao afastamento de várias figuras de destaque na
área do entretenimento, política e negócios. Quando se reúnem as condições subjectivas
e objectivas, basta alguém apontar o dedo e todos verão que o Rei vai nu.
*Actor, Activista e Biólogo
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