Os casos de assassinatos sumários
relatados pelo jornalista e activista Rafael Marques, constantes do documento
«O campo da morte – Relatório sobre execuções sumárias em Luanda, 2016/2017»,
continuam a suscitar comentários por parte das pessoas que têm tido contacto
com a descrição caso-a-caso, e, por isso, merecem a nossa atenção enquanto
sinais e reforço da ideia outrora abordada segundo a qual estamos perante um
processo avançado de degradação colectiva da sociedade angolana.
Sedrick de Carvalho | Folha 8 |
opinião
Orelatório descreve 50 casos de
execuções extrajudiciais, todos perpetrados em Luanda, concretamente nos
municípios de Viana e Cacuaco. O site Rádio Angola, da organização cívica
Friends of Angola, tem publicado diariamente um caso. São as reacções dos leitores
aos casos publicados nessa plataforma que citaremos ao longo desse texto.
Importa, porém, recordarmos o
porquê da degradação colectiva. No artigo «A degradação colectiva em Angola»
citámos Christine Messiant quando defendemos que, para além do que a falecida
socióloga chamou de “sistema de implicação geral”, que ocorre mediante uma rede
de “redistribuição clientelar”, o regime angolano empenha-se bastante na
destruição do tecido moral e espiritual do indivíduo, sendo que para tal missão
usa-se duas categorias: imoral e ilícito.
A Constituição da República de
Angola (CRA) proíbe a pena da morte no seu artigo 59.º, que tem como epígrafe
«Proibição da pena de morte», e o Estado, enquanto entidade que se materializa
nos seus órgãos de soberania, tem a obrigação constitucional de respeitar e
proteger “a vida da pessoa humana”, pois “é inviolável”, nos termos do artigo
30.º também da CRA. Por este motivo, o legislador constituinte acrescentou
ainda, no n.º 1 do artigo 66.º, que “não pode haver penas nem medidas de
segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de
duração ilimitada ou indefinida”. Está claríssimo!
Com a abolição da pena de morte,
estabeleceu-se que a pena máxima é a de 24 anos de cadeia efectiva, podendo, em
casos excepcionais e extremamente graves, atingir os 30 anos, não sendo exemplo
os 28 anos de cadeia a que José Kalupeteka foi condenado, uma decisão que nos
faz lembrar os primários casos hipotéticos que debatemos em Direito Penal sobre
a eventualidade de ser aplicada a referida medida.
A presunção de inocência é um
princípio jurídico-penal constitucionalmente consagrado no artigo 67.º, n.º 1,
no âmbito das garantias processuais. É assim que até o ex-vice-presidente de
Angola Manuel Vicente, citado por Rafael Marques no texto introdutório do
relatório, é tratado como acusado e não criminoso, e por isso tem direito a
defender-se das acusações em Portugal. Ponto!
Agora vejamos as reacções ao
relatório. O último caso publicado no site citado – o 20.º – é o de Bad Lilas,
um jovem de 23 anos que foi morto pelo Esquadrão da Morte num beco do bairro
Kikolo, Cacuaco, à luz do dia e, logo, aos olhos de quem passava pela zona,
inclusive de um agente da polícia conhecido na localidade como Chefe Lâmina
que, quando o executado com cinco tiros lhe pediu ajuda, respondeu: “Polícia
não acode bandidos”.
Um leitor atacou logo o autor do
relatório ao chamar Rafael Marques de burro e questionando se “o que eles fazem
é bom para lhes acudir”, ou se “estás a gostar da criminalidade que está a se
passar cá, em Angola”. A última pergunta carrega também uma mensagem que
norteia a nossa abordagem: “Se és tu que andas [a] lhes mandar, melhor parar
porque ainda vão morrer mais gatunos, ouviste?”.
É surpreendente a euforia com que
se aplaude e incentiva os assassinatos. Outro leitor, comentando o caso 19.º,
disse mesmo que “se o SIC deixar de executar os altamente perigosos e a
bandidagem subir nos subúrbios a culpa é vossa”, acrescentando: “Parem com este
trabalho [de denunciar as execuções sumárias]”. No mesmo caso, eis o seguinte
comentário: “Reitero que mereceu-lhes esta acção do SIC, e deve ser sempre
assim, devem ser mortos, pelo menos os restantes ganhem juízo com isso. Bom
serviço SIC”.
Frases como “bem feito”, “o
salário do seu emprego”, “salário do pecado é a morte”, “eles também matam” e
“são bandidos”, estão entre as mais usadas nos comentários em sinal de
aprovação ao morticínio.
Todos mortos sem direito a
defesa. Mortos sem direito à vida. Entretanto, o 18.º caso, do sobrevivente
Pedro Avelino Eduardo “Abega”, de 25 anos de idade, que foi baleado no olho
esquerdo e no abdómen, não mereceu nenhum comentário. Talvez porque ele, Abega,
está vivo e garante que não é criminoso. Era motorista de candongueiro. Agora
já não conduz por ter a visão drasticamente reduzida.
“Os homens do SIC apareceram
depois com o carro de remoção de corpos. Deram conta que eu era inocente e
deixaram-me ali mesmo no chão a gemer, e foram-se embora”, relata Abega no
relatório.
Mas Rafael Marques tem
consciência deste apoio massivo que a esmagadora e absurdamente pobre população
dá ao Esquadrão da Morte: “A política de assassinatos do governo assenta num
plano demagógico: ao abater o vizinho supostamente criminoso, num bairro pobre,
isso tem impacto no ethos da comunidade, e a população sente que o Estado está
a combater o crime. Em contrapartida, quando se mata um inocente, é apenas um
mau trabalho (como lamentou o comandante Quintas)”, escreve Marques num dos
textos do relatório.
O que se pretende com estas
denúncias não é defender criminosos, mas exigir o respeito e cumprimento da
Constituição e demais leis quanto ao procedimento criminal a ser adoptado
perante suspeitas de cometimento de crimes. Ou seja, levar os suspeitos a
tribunal e ser-lhes dada a possibilidade de se defenderem das acusações, e, se
ficar provada a culpa, cumprirem as respectivas punições pelos crimes. Assim
funciona um Estado de Direito.
Porém, o principal fundamento
para todos exigirmos o fim dos assassinatos é o respeito pela vida humana
enquanto direito humano. Angola aboliu a pena de morte formalmente em 1992, com
a Constituição criada à altura. Mas em Portugal a pena de morte foi abolida há
150 anos, e na comemoração deste um século e meio, celebrado em Julho de 2017,
a ministra da Justiça portuguesa, Francisca Van-Dúnem, nascida em Angola, fez
questão de enfatizar que, ao condenar alguém à pena de morte e ao executá-lo,
estamos perante um assassino assassinado. Ou seja, até mesmo quando a pena de
morte é aplicada a um assassino, quem o mata é também um assassino. Neste caso,
o Estado passa a ser o assassino.
Assim, apoiar as execuções
sumárias a pretexto de que “eles também matam” é sintomático da degradação
colectiva da sociedade, e os apoiantes se tornam cúmplices morais dos
assassinos. O elevado índice de criminalidade não deve ser a desculpa para agir
como justiceiros sanguinários. Pelo contrário, todos devemos exigir firmemente
a resolução das causas que fazem com que, em consequência, a criminalidade
esteja no nível actual.
Exigir a morte de alguém não nos
eleva moral e espiritualmente. Apenas nos coloca ao mesmo nível dos criminosos.
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